Entulho da Vida

Sentada na beira da cama, Carla aparava as unhas com uma lixa enquanto eu tentava abrir uma garrafa de vinho com uma faca.

Eu tinha perdido o meu saca rolhas e resolvi tentar empurrar a rolha pra dentro da garrafa. Quando finalmente consegui, enchi dois copos, entreguei um para Carla e sentei do lado dela. Ela deixou a lixa de lado e ficou me olhando, como se eu fosse alguma criatura de outro planeta.

- O que foi? – Perguntei.

- Em 96 eu enterrei o meu primeiro marido. Quantos anos você tinha nessa época?

- Dez anos.

- Pois bem. Ele teve câncer... de fígado. Morreu em questão de meses. Acho que ele tinha sua idade quando faleceu.

- Bem. Acho que estou bem de saúde. Mas deixe um vestido preto bem bonito separado por precaução.

- Não sei se eu iria ao seu enterro.

- Sério?

- Já vai ter mulheres o suficiente na beira do seu caixão.

- De onde você tira isso?

- Quase dá pra ver o rastro das mulheres que passaram por aqui, meu bem. – Ela falou, apontando pra a minha cama.

- Acho que a maior parte delas não vai se dar o trabalho de aparecer.

- Você se importa com isso?

- Não acho que defuntos se importem com velórios vazios.

Carla riu e deu um gole do vinho.

- Não costumo sair com homens mais novos. Você é quase um menino, mas tem alma de velho.

- Você não é a primeira pessoa a me dizer isso.

- Eu sei que não sou.

Carla ficou me encarando, como se tentasse ler a minha mente. Eu já tinha me acostumado com a forma que me olhava nesses momentos, mas não era exatamente uma sensação muito confortável.

- E o seu segundo marido? – Perguntei, para quebrar o silêncio.

- Eu estava desconfiada que ele andava me traindo com uma amiga nossa. Quando o confrontei sobre o assunto ele teve um infarto fulminante.

- E ele estava te traindo mesmo?

- Tive a certeza no enterro.

- Como assim?

- Essa amiga chorou tanto no velório que pareceu a viúva era ela.

- Deve ter sido difícil.

- Não vou negar meu bem. Foi bem difícil nos primeiros meses. Aceitar a traição não foi tão difícil. A casa vazia foi pior. Mas nessa vida a gente se acostuma com tudo. Até com a solidão. Por isso eu prefiro evitar a fadiga hoje em dia. Não existe motivo algum pra eu querer dividir a minha vida com quem quer que seja.

- Acho que nunca me acostumei totalmente com a solidão... é como se estivesse faltando alguma coisa... Gosto de estar só, mas às vezes me isso me incomoda... apesar de eu precisar do meu silêncio pra escrever.

- É por que você é artista. Completude é inimiga da arte.

Carla terminou de beber o vinho, se esticou e pegou as roupas que tinha deixado largadas sobre a cama.

- Preciso ir. Amanhã o dia vai ser longo.

- Tudo bem. – Falei.

Ela se levantou e começou a se vestir. Quando estava pronta, sentou no meu colo e me deu um beijo longo.

Quando terminamos, ela tinha um sorriso no rosto.

- Gosto do jeito que você me beija. Da sua falta de pressa. – Ela disse e então se levantou e pegou as chaves do carro que estavam sobre a escrivaninha.

- Posso te dar um conselho? – Ela falou, olhando para as paredes do quarto.

- Sim. – Respondi.

- Deixe sempre espaço pra coisas novas na sua vida. Mas pra isso você vai precisar se livrar de muito entulho. De muito passado acumulado. E abra as janelas, meu amor. Deixe sempre as janelas abertas.

Fiquei calado, ruminando o que ela tinha dito. Então Carla soltou um beijo com as mãos e andou em direção à saída.

Fui com ela até a porta e assisti enquanto ela descia pelo corredor, pensando no que havia dito.

Voltei para o quarto e me joguei na cama. Adormeci rapidamente. Talvez pelo cansaço, ou pelo tanto de vinho que havia bebido.

Quando acordei já havia amanhecido. Saltei da cama, incomodado com o calor. Fui até o banheiro, lavei o rosto e escovei os dentes. Depois, peguei um saco de lixo e comecei a juntar todo o lixo espalhado pela casa.

Abri as janelas e deixei o sol entrar,

por mais que me doesse os olhos.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 17/11/2020
Código do texto: T7113756
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