Sapatos no telhado
Tivera uma existência solitária,por algum motivo só dele,que jamais eu soube.
De pequenino já demonstrava uma tendência a isolar-se, pouco falava,mas extremamente observador e inteligente.
Motivo de preocupação à minha mãe que naquela época em meio a tantas aflições,,não sabia como lidar com o menino ,mesmo porque nada conhecia de psicologia e seus caminhos,pois que também viera de tempos sofridos e sobreviveu como pôde.
Amor , atenção e os cuidados necessários foram a ele dispensados na medida do possível.
Crescia o garoto entre altos e baixos .
Em 1971,quando então mudamos para Curitiba, contava com seus doze anos e pouco frequentou a escola ,cursando só o primário.Não havia quem o convencesse de continuar os estudos,apesar de todo empenho da família e do suporte financeiro do irmão mais velho para mantê -lo estudando.
De natureza arredia ,raríssimas vezes se associava com os familiares,preferindo a solidão de seu quarto entre seus livros e seus discos de músicas clássicas. Leitor nato,devorava livros de toda espécie , Religião,História,Agricultura,Literatura,Biografias .Ouvia Beethoven,Bach,Vivaldi,e também moda de Viola,músicas orquestradas.
Seu nome era o mesmo de um famoso Dicionário, Aurélio, tendo um exemplar de tamanho gigante com as letras em dourado que usou por toda a vida.
Tudo que não aprendeu na escola compensou pela leitura e pelos caminhos da vida.
Optou por ser "construtor de casas",como costumava dizer, e construiu diversas na região de Curitiba.
Tinha uma inteligência aguçada e um raciocínio rápido e prontamente respondia à algum argumento que não lhe parecia satisfazer, e que muitas vezes até me deixava desconcertada.
Seu mundo era seu quarto,onde cabia tudo que tinha ,seus livros,seus discos de vinil,suas ferramentas de trabalho,suas fitas cassetes ,seu toca discos e seu gravador,que muitas vezes usou para gravar os sobrinhos cantando sob a promessa de quem cantasse melhor,ganhava balas,mas por fim todos eram premiados.
Era carinhoso com nossas crianças !
Uma maneira de externar seus sentimentos, e talvez de se sentir entendido e querido.
Era de pouca conversa,embora me recebesse bem para conversarmos,mas nem sempre era assim,dependia muito de sua disposição.
Não demorou muito para perder-se no submundo do alcoolismo,e isso causava muita tristeza,principalmente à nossa mãe, pois isso se estenderia por longos anos.
Contudo,ainda que assim fosse,por muito tempo permaneceu nas suas atividades laborais, mas era certo que as consequências viriam a longo prazo.
Sempre recluso em seu espaço,a ouvir suas músicas preferidas,sabe-se lá o que ia em sua mente pois não era de expor seus sentimentos.
Paralelamente a profissão de "construtor" fez curso de Relojoeiro e Chaveiro pelo Instituto Universal Brasileiro.
Passava horas a lidar com as minúsculas peças dos relógios,perdia-se no tempo,talvez para não enfrentar suas horas vazias…
Fez funcionar alguns dos relógios da família que haviam sido abandonado nas gavetas e eu o elogiava por isso,e mesmo ele não dizendo nada,sabia que assim causava um efeito bom na sua autoestima.
Recusava tratamento,característica de quem tem problemas com álcool, era aflitivo vê-lo assim e nada podermos fazer contra sua vontade.
Alguns anos após,finalmente aceitou e iniciou uma terapia,melhorando por um tempo,mas recaindo inevitavelmente para a angústia de nossa mãe,já a essas alturas já bem idosa,mas não desistindo jamais do filho,coisas da maternidade e do coração de mãe!
Meu pobre irmão,que luta interna travou, que solidão foi essa onde se instalou e de onde nunca mais saiu,mesmo tendo tentado por algumas vezes? Não posso dimensionar que dor era aquela que o fazia refém e que carregou consigo vida afora.
Ficou uma vida inteira com a mãe,referência de sua vida e que foi seu suporte nessa longa travessia de dias nublados e incertos.
Lembro-me com especial carinho de suas idas em minha casa e me pedia para esquentar a comida que levava para o trabalho,que ficava bem próximo de onde eu morava,que ele mesmo preparava na noite anterior.
Não aceitava o convite para sentar-se à mesa conosco, preferindo comer lá fora numa escadinha nos fundos do quintal.Era seu jeito,não tinha jeito de mudá-lo, sempre foi assim.
À tardinha quando regressava do trabalho deixava suas roupas de serviço pendurada na área dos fundos e seus sapatos sujos de cimento e terra sobre o telhado,até na manhã seguinte quando retomava para mais um dia de labor. Fotografei os sapatos, pois que já fervilhava em minha mente um poema à ele dedicado e que aqui transcrevo logo mais abaixo.
Saudade é o nome do que sinto neste instante ,porque sei o quanto sofreu e o quanto tinha um bom coração.
Ainda hoje em meus pensamentos eu o vejo menino ...
Tentou se libertar do vício e de suas angústias uma vida toda e só encontrou a paz um ano e meio após nossa mãe ter partido para sempre…
Não suportou a ausência da mãe que era todo seu suporte e que nunca cortou os laços que a prendiam ao filho problemático,até que o fôlego da vida cessou.
Não há mais dor,nem aflições,descansam agora num mesmo lugar!
Leda Mara Oliveira