Um tempo
Valéria Lopes
Quase madrugada, me perco do sono
E ele de mim.
Lá fora, o vento balança as folhas da mangueira e o sino, que enfeita a varanda, badala sem parar. Preciso de silêncio para o repouso de minha alma e descanso do meu corpo, mas o barulho do vento me traz resquícios de um tempo redescoberto em algum canto de mim.
Um tempo de vento e noite escura, que já vai longe...
Um tempo em que eu, menina, vez ou outra, perdia o sono, me levantava da cama, ia até a cozinha e abria a portinhola da porta que dava para os fundos da casa. Sem altura, meus olhos cresciam, ao ficar na ponta dos pés e ver as folhas da bananeira balançando com o vento, facilitando a luz da lua clarear.
Se alguém se levantasse, não entenderia o que uma menina alegre, que vivia a brincar o dia inteiro fazia, ali, àquela hora da noite, olhos arregalados, espiando não sei o quê.
Um desafio que me impunha, em noites de insônia, mas nunca o realizava: eu teria que provar a mim mesma que era corajosa. Então, era só abrir a porta, atravessar o quintal escuro e ir até a cerca de arame farpado, próximo ao pé de bananas, à margem do rio, onde eu brincava, pela manhã, cutucando os girinos com uma vara de madeira.
Mas eu sentia muito medo.
E não encontrava um jeito de ir até lá, enfrentar o escuro e cumprir, assim, a tal ordem vinda de mim. Uma tortura em noites mal dormidas.
Quase sempre, meus olhos viam a lua e seu clarão enorme. A proximidade da luz ora indo e vindo, aliviava minha angústia. Era como se a lua não me obrigasse a nada.
Em meus temores mais profundos, ouvia a voz das folhas a me aterrorizar e a luz da lua como mantra. Era um resgate de mim, ainda em tempo.
Com o passar dos anos, meu pai acabou com a bananeira e fez um muro separando o quintal da margem do rio.
No portão, ele pôs uma tranca; logo abaixo, um cadeado. A chave ficava no porta-chaves, na cozinha. Eu me aquietava, livre da tortura, fingia uma coragem que nunca tive: “Se a bananeira estivesse lá, teria coragem de abrir a porta da cozinha, caminhar até o portão, abrir o cadeado, vê-la de perto e ficar com a lua, mas não há nem um broto ou raiz... A lua, sim.” Eu a via sem ter que esperar o vento abanar as folhas da bananeira.
Não há mais esse esconderijo, não há mais casa de meus pais nem bananeira nem nada.
Mas há um tudo em mim e uma alma tão pequena que não suporta meu peso, meus delírios, meu choro.