NASCIMENTO
Estou nas trevas mais sombrias, sem cores, sem beleza e sem lâmpadas. No Sheol fiz minha cama e não há nada que possa almejar. Minha consciência está afundada nas incertezas da vida. Não sei o que de mim será, se uma flor ou espinheiro. Nas mãos estou de outrem, que não conheço, mas que alimenta-me quando lhe convém. Sou parte sua, mas que me parte, por saber que só assim concebem. Já tenho pele, ossos, cabeça e tudo mais. Pode sentir meu coração? Se não consegue sentir, vou te dar um sinal...Pam, pam, pam... Sentiu? Não? Espere...novamente... pam, pam, pam... É assim que meu coração bate! Espero que meus chutes te deem uma percepção.
Deixe-me contar, por favor, quão impressionante e admirável foi a forma que me desenvolvi. Eu antes era dois, e tornei-me um com um abraço inseparável, e de um que me tornei, cresci de maneira tão abismal, que com três meses meus órgãos já estavam formados. Com cerca de 18 semanas eu já podia te ouvir cantar toda desafinada, mas para mim, era uma sinfonia angelical. Mas nem sei porque estou te contando se foi você que acompanhou tudo de pertinho.
Certa noite ouvi você gritar, te faço uma confissão, em alto e bom som, dizendo que eu era apenas extensão do seu corpo. É obvio que só respiro e me alimento pelo canudinho comprido, mas se você pensar direito, eu já tenho dois pés, duas mãos e um cérebro, dos quais agem e se movimentam diversamente de você. Você não acha que se eu fosse uma extensão, você não mandaria em meus movimentos? Deixa eu lhe provar... Pam, pam, pam.. é você ou eu quem está fazendo isso?!
Antes de estar nesse leito aconchegante, eu nadei bastante até o sol encontrar. Milhares e milhares de coleguinhas nadaram junto comigo. Pois é, apostamos uma corrida e tanto... e que bom que ganhei, mas estou triste, porque você se quer me deu Parabéns. Eu teria todos os motivos para que me felicitasse, pois na minha primeira corrida já fui um grande vencedor, e gostaria que alguém ficasse feliz por mim, contudo, parece que os barulhos que ouvi, eram apenas por você e o papai. Não deram atenção a minha conquista!
Sim... e que negócio é este, senhorita, que ouço você dizer que só quem pode falar do meu desabrochar é você? Eu sei muito bem que corri do papai para este leito aqui, e acho que, se sai dele, eu também parte dele sou. Mas meus olhos são como riachos, e riachos sangrentos, avermelhado pelos sentimentos que vejo que vocês dois sentem por mim.
Eu tenho um anseio, queria ver os jardins tão belos que vocês dizem que do outro lado há. Como será o cheiro dos perfumes? Da chuva quando cai ao chão? Da roupa, assim que acaba de se lavar? Sim... Acabei de lembrar de algo... só não gostaria de sentir o odor do cocô. Dizem que fede muito! Eca! ...Mas tudo isso, deve valer apena. Pelo o que falam, tudo que está lá fora deve ser muito bom! Estou ansioso, não vejo a hora de sair do meu leito e navegar nas aventuras da vida externa. Como serei quando crescer? Que olhos tem a minha mamãe? Seus cabelos devem ser belos, seus braços bem aconchegantes, e seu nariz, será que é pequeno como o meu? E Meu papai? Será que tem bigode? É fortão ou magricela... Quero muito conhece-los!
Eu sei que devem se preocupar como serei, ou então, se me preocupo em nascer num lugar humilde, mas quero que saibam, que tal angústia é apenas de vocês. Não percebes que se fico me movimentando é porque logo quero encontra-los?! Se assim almejo, é que pouco me vem ao caso onde, quanto ou o que terei. Se serei negro, pobre, rico, branco... e se eu for criança especial? Tiver algum problema físico ou mental? Espero que não seja motivo para não ver o dia amanhecer, afinal de contas, se eu fosse contar o que eu já ouvi de vocês...Só sei que não vejo a hora de trilhar novas veredas e olhar novos horizontes.
Pam, pam, pam... Nossa, aqui já está tão apertado, não é mesmo?! Espera... porque está me puxando? Socorro! Quem são esses? Que lugar enorme! Ai, que luz forte. Para! Porque bates no meu bumbum?!Buuuaaaa!!!!!
Bom dia Vida!