Desembrulhar o dia

Quando eu posso, quando me sobra um tempinho, quando eu não tenho de sair correndo atrás de algum compromisso inadiável, meu passatempo preferido é desembrulhar o dia. Desembrulhar como se fosse um presente, não um pacote qualquer, um presente daqueles que a gente ganhava quando criança, com a melhor das expectativas. Presentes de infância são aqueles capazes de mudar nossa vida para sempre, não são? Desembrulhar prestando atenção na embalagem, no papel, no laço de fitas... Esse dia é mesmo meu? Posso desembrulhar agora?

Eu acordo cedo, de preferência, então me estico na cama, levanto os braços e as pernas o mais alto que consigo, me alongo em todas as direções, crio muita coragem e me levanto. Não pensem que é fácil! Fico de pé e é preciso abrir logo a janela, antes que venha qualquer arrependimento. Verifico se o sol já saiu das profundezas do universo e veio acordar as árvores e os demais viventes. Observo a cara do dia, as cores do céu, o formato e a disposição das nuvens. O segredo é conversar com as nuvens e ouvir o que elas têm a nos dizer, desejando que falem baixinho, nada de trovões, nada de mudanças bruscas de humor. Quero saber se vai chover, se a umidade será alta ou baixa, qual a direção do vento, se vai ventar forte ou se a brisa vai nos acompanhar durante a caminhada matinal. Meço a temperatura do ar e confiro o cheiro que exala da tímida manhã, quero descobrir tudo o que há para desvendar sobre o novo dia que começa.

Às vezes, fico impaciente, mas não adianta ter pressa, o tempo é dono de si, não aceita sugestões, muito menos imposições. Nesse caso, melhor não demonstrar medo nem hesitação, mas encará-lo de frente e partir para um bom café quente. Muitas decisões terão de ser tomadas. O dia será desembrulhado com tudo o que tiver dentro: a algazarra das aves, o latido faminto dos filhotes no quintal vizinho, o mau humor do mercado ou o choro das crianças.

O dia deve ser desembrulhado com calma, senão azeda, entorta, deforma. Desembrulhar apressado pode quebrar peças frágeis, pode deixar entrar areia nas engrenagens e ocasionar entupimento nos drenos, nos alvéolos e desaguadouros. Um dia não é uma coisa simples que se resolve de improviso, possui contradições complexas. O dia exige análises políticas, conjecturas e diagnósticos. Se possível, desembarace com a ajuda da leitura de livros e jornais.

A melhor coisa é começar o dia ao lado de boa companhia, com quem se pode conversar sobre a noite passada, planejar o que fazer para derrotar o medo, o ódio, as desesperanças que nos espreitam a cada esquina. Desembrulhar juntos melhora as previsões, melhora o ânimo, fortalece a convicção de que nada como um dia depois do outro.

Renato Muniz B Carvalho
Enviado por Renato Muniz B Carvalho em 12/11/2020
Código do texto: T7110140
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