PULEM TODOS..!

O bacana da última metade da década de 1960 em Curitiba era a possibilidade de comprarmos o nosso carro assim que começávamos a trabalhar, mesmo ganhando uma merreca de salário. As fábricas de automóveis recém-instaladas no Brasil - Volkswagen, Ford, Chevrolet e FNM - já haviam tomado conta do mercado e reinavam soberanas, e aqueles classudos automóveis de alguns anos atrás estavam sendo descartados a preços ínfimos pelas pessoas mais abastadas. Com efeito, quem haveria de querer se incomodar com a falta de peças para carros importados, com tantas concessionárias espalhadas pelo país e habilitadas para consertar rápida e eficazmente os carros aqui fabricados? Diga-se que, àquela época, o custo das peças e serviços não era essa roubalheira desavergonhada praticada nos dias de hoje, em que nos tornamos reféns dos preços extorsivos impostos pelas montadoras.
Mas como eu vinha dizendo, os carros importados, antes exclusividade dos endinheirados, agora estavam ao alcance da trabalhadora juventude brasileira. Um cara boa praça que morava na vizinhança e simpatizava muito com nossa turma da esquina, o Edmilson, começou a trabalhar cedo, por volta dos 18 anos, e pouco tempo depois já havia amealhado uma bolada suficiente pra comprar seu primeiro carango. Foi o ele que fez. Negociou não sei aonde nem com quem um Ford Vedette, preto e invocado, um show de carro que quase não se avistava nas ruas – penso ter sido o único que vi em toda minha vida. Nas ensolaradas manhãs dos sábados, lavava caprichosamente a lataria e os vidros, passava aspirador no interior e pretinho nas rodas. À tarde, espalhava Gumex no cabelo, espreizava Avanço nos sovacos e borrifava um pouco de Old Spice no pescoço. Vestia sua camisa branca Volta ao Mundo, um pulôver vermelho de cashmere, a calça preta de tergal com vinco permanente, e calçava um classudo cromo alemão da Clark. Tudo isso mais os badulaques de sempre: óculos escuros Ray-Ban, pente de osso Flamengo, e um Patek Philippe de 21 rubis e calendário automático - herança do vovô materno. Estava pronto para a porfia! Entrava confiante no Vedette, acelerava virilmente até a esquina e entupia o carro conosco, para uma gostosa ronda à caça das românticas e sorridentes mocinhas curitibanas, irresistivelmente debruçadas nos portões das suas casas. Essa era uma aventura constante praticada pela rapaziada de Curitibacity naquela época, em todos os não chuvosos fins de semana.
Aconteceu que, num dos agostos da vida, a cidade litorânea de Antonina - distante 80 km de Curitiba - promoveu sua tradicional e grandiosa festa, e o Edmilson se ouriçou todo pra estrear o Vedette na estrada. Convidou parte da turma pra descer a serra, lógico que aceitamos! Não sei como coube tanta gente no carro, embarcamos nuns sete ou oito, mais violão e atabaque. Rachamos a gasolina e fizemos uma gostosa viagem, com brincadeiras o tempo todo, e também cantando ‘Oh Carol’ de Neil Sedaka , ‘Diana’ de Paul Anka e outros sucessos assemelhados.
Nem lembro se a festa estava boa ou ruim, porque só o fato de estarmos em turma já era um barato, e com as paqueras rendendo juros e dividendos na cidade vizinha, o que mais poderíamos desejar? Mas o que nos marcou indelevelmente foi a inusitada ocorrência na volta a Curitiba. Entardecia, e pegamos a estrada pra regressar. Na subida da Graciosa o motor ferveu – era comum isso acontecer - então paramos na Bica da Santa para deixá-lo esfriar e completar a água do radiador. Continuamos a viagem, e o Vedette se comportou bem até o alto da serra, só que minutos depois surgiu um cheiro de fio elétrico derretido. Não demos bola e seguimos em frente, mas a uns 30 km de Curitiba a coisa degringolou, porque dentro do painel brotou uma densa fumaça preta, o que nos deixou apavorados. Zeloso pela segurança da turma, e temendo uma explosão ou incêndio, o Edmilson pisou no breque e deu a ordem extremada: _”PULEM TODOS..!!!”
Foi um atrás do outro se jogando pra fora do carro, que ainda estava em movimento. O Zaquinha rolou ribanceira abaixo, mas felizmente conseguiu se segurar num arbusto salvador. Os demais correram em todas as direções, tropeçando em tudo que havia pela frente, totalmente desorientados.
Quanto ao Vedette, ficou abandonado no acostamento por um bom tempo, com a fumaça vazando pelo capô. Assim que aparentou normalidade, nos aproximamos pra avaliar a extensão dos estragos. Nossa turma achava que a rebimbóca da parafuseta era a culpada de tudo - porque nenhum de nós entendia bolhufas de motores - mas o Edmilson não, ele era um craque em mecânica. Abriu o porta-malas e dali retirou uma invejável caixa de ferramentas. Deu uma espiada aqui, outra ali, soltou uma mangueira, isolou um cabo, apertou uma vela, regulou o giglê, conferiu o distribuidor, e em seguida apregoou em alto e bom som: _”Simbora minha gente, que o problema tá resolvido..!”
Nenhum de nós botou muita fé – porque santo de casa não faz milagre - mas a verdade é que o motor pegou “bunitinho”. Claro que precisou certa dose de coragem pra botar novamente o traseiro no carro, e só encaramos o desafio por uma razão muito simples: falta de outra opção...hehehehehe.
Chegamos sãos e salvos na Curitiba de outros tempos. Por muita sorte, os estragos ocorridos no Vedette não foram de grande monta, e graças a Deus o Edmilson - sujeito bamba na coisa - conseguiu sozinho dar conta do recado.
(Marco Esmanhotto)
Marco Esmanhotto
Enviado por Marco Esmanhotto em 12/11/2020
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