O vento sopra enquanto as pandorgas singram os céus...

No final da tarde, da varanda de casa, contemplo o céu.

Simone de Beauvoir certa vez afirmou: “O inconsciente não tem idade”.

Penso nessa frase enquanto ergo o nariz para cima e tento sugar na brisa gelada os cheiros da natureza esparramados em volta da varanda.

Minhas vistas se embriagam, vejo várias pandorgas singrando entre as nuvens, movidas pelo vento, ao toque ligeiro e atento das mãos de crianças.

Um sorriso sem graça, a lembrança ruim: dias atrás, após uma inesperada crise de labirintite, o susto foi tão grande que pensei no fim de tudo. Dominado pela tontura, vi de perto o pior, imaginei repousar no lugar dos esquecidos, prendi as mãos nas paredes como antes prendia as mesmas mãos com firmeza entre a linha de algodão, segurando uma pandorga quase acima das nuvens.

Por momentos me deixei levar pelo medo de morrer amanhã, mas hoje já é amanhã e prossigo com a mesma disposição do menino gritando lá embaixo, feliz com o brinquedo preferido entre os dedos.

Um rufar de vento, o colorido preenche os meus olhos, o barulho inconfundível me invade: gostava da eufonia provocada pela rabiola de plásticos coloridos enquanto a linha de algodão era esticada, tal qual um gemido da vida ganhando forma num brinquedo que voava.

Os gritos das crianças lá embaixo é o mesmo de sempre.

Fecho os olhos, sinto a coceira nos pés e a ansiedade nas mãos, o passear atento rodeando a brincadeira, até que alguém me permitia apanhar a latinha envolta em linhas cheirando a cola e meu coração pulsava acelerado: agora, o brinquedo, como se estivesse vivo, preso a um tênue fio de algodão, dependia da firmeza da minha mão para sobreviver.

Era como se a vida pulsasse no céu.

No anseio daquele momento, muitas vezes os meus dedos sangravam, mas eu nem ligava, eu era criança, ah, eu era um menino soltando pandorga...

Quanto tempo ainda me resta para ficar na varanda de casa suspirando o tempo passado? O cheiro do ar é o mesmo, já eu, abismado, não enxergo os rumos do vento. Então risco na cabeça vãs filosofias: tal e qual o brinquedo colorido singrando no céu, nossa vida é segura por um fio: às vezes o cerol inimigo corta inesperadamente a linha de algodão e a impressão é de uma quilha rasgando a onda fina do rio; basta um sopro mais forte do vento para a pandorga se soltar, devagarzinho, bailando no ar, até sumir no infinito.

Imagino a linha de algodão entre os meus dedos e aperto, aperto, aperto...

Súbito, uma pandorga cai estraçalhada nos fundos do meu quintal.

Logo um bando de meninos virá atrás – penso e já não seguro os meus movimentos – num salto, chego antes deles.

“O inconsciente não tem idade”, e sou dono do quintal...E no minuto seguinte, já estou com a belíssima vermelha nas mãos.

Alguns ajustes e ela voa novamente – penso, num sorriso -.

Chamei o meu filho para brincar comigo, a custos o tirei do computador: “O nome disso é pipa, pai!” ele disse, enquanto me observava agachar com dificuldades – um sorriso de menino no rosto – ajeitar as tiras do bambu e colar cuidadosamente o papel de seda, reclamando das vistas cansadas, com o dedo indicador pregando mais fundo os óculos no rosto.

Para mim sempre será pandorga, penso, mas nada digo, embora um brilho no rosto denuncie a minha euforia.

Meu filho sorri, dou linha, a rabiola finda o vazio do silêncio, no meu rosto há um sorriso de criança ao perceber que posso olhar para o céu e cheirar o vento sem sentir tontura.

Outras pandorgas singram os céus, e a minha também está lá, da cor vermelha intensa, da rabiola dançante e mais barulhenta entre todas.

É assim porque somente eu posso ouvi-la.

E o vento cobre o meu corpo, suspiro, sorrio vendo a vida se abrir acima do meu rosto, e eu seguro firme a linha entre os dedos enquanto busco no ar aquele cheiro bom de antes, aquele mesmo que ainda vagueia no céu da minha varanda.