Dormir com o motoqueiro
Cá onde vivo -- infeliz --, percebo que as horas mais propícias para o melhor do sono são as horas adjacentes ao momento do amanhecer. Duas horas antes e depois d'alvorada. Nesse intervalo de tempo, não se ouve o ronco estridente das fogosas motocicletas, porque o brioso rapaz, intrépido motoqueiro que é, dorme profundamente depois de mais uma noitada. Nas primeiras horas sagradas do dia, quando, mesmo nos grandes centros urbanos, percebe-se as energias telúricas e cósmicas com curiosa evidência, as pessoas saem para atender às demandas da labuta cotidiana. Vejo pais de família com mochilas nas costas, homens e mulheres vestidos à social, operários, porteiros, balconistas e trabalhadores braçais com seus uniformes. Mesmo com esse desfilar do proletariado às 5hs da manhã, não há barulho, ruído demasiado que provoque desconforto e irritação -- sensações desgraçadamente típicas dos nossos dias cada vez mais atribulados. Não. O ônibus surge na esquina, um carrinho passa aqui, outro, acolá, com os decibéis dos motores nos limites do aceitável. Contudo, basta o sol começar a aquecer que eles, os cavaleiros das motocicletas no cio, despertam e, qual praga maligna, começam a infectar a atmosfera com os ruídos abismais dos seus motores. A conclusão a que cheguei é inevitável: para dormir bem, tem-se que dormir com eles.