Diário insólito

Fiquei alvoroçado graças a recente perturbação moral de Sebastiana, coitada, diante da indecisão entre casar e não casar. Grudada na novela até tarde se mantém indecisa. Por sorte os beijos de Marcela pelo telefone me retornaram ao estado de tranqüila inatividade.

Corro para o quintal para gastar o dia e ouvir o mesmo sabiá.

Rosa Helena apareceu com a jarra brilhando suco de laranja e algumas goiabas. Alguém bate. Fujo do Castanheira. Fuga por fastio. Chega arrastando lances da maior sorte e por isso tenho-lhe inveja e aversão de perceber como consegue ganhar fácil o que havia perdido. Deve haver mais caminhos do que segredos nesta vida, mas não. Nada lhe digo. Dona Vitorina quem cuida do Castanheira. Balofão. Ela é composta de angústia nas palavras, bem mais do que na história real. Quisesse a alma viver nas trevas lá estaria o modelo perfeito. Dona Vitorina. Vitima do pessimismo. Mas cada um com sua bicicleta! Agordalhado Castanheira está no último ano da Faculdade de Leis há séculos porque as leis são muitas e o espírito da lei um desafio. Qual o motivo de tanta dor Dona Vitorina? - Tenho gosto pela melancolia... Recolhendo tragédia de mil peças falidas em teatros abandonados... , e ainda mais, quando a melancolia afeta os cristais já mais nada se pode beber.

Disse emitindo um ai de cortar a alma. Tinha admirável inclinação para a clarividência enquanto que eu ao contrário do que se possa imaginar lia apenas os resumos amistosos.

Um tio distante de Minas, havia lhe caído nas graças. Namoro rápido de sala. Dele se apaixonou durante a era Vargas e passearam de mãos dadas pelo Viaduto do Chá. O pretendente era um moço de prestígio na cidade pacata. Teria casado com ele, caso se livrasse dos baixos pensamentos que lhe metiam os mais singulares terrores.

Nesta esquina, ainda ontem, agora, estava aqui comigo um dos maiores exemplos de marido. Nesta esquina reencontrou Libório, ex-namorado de Rosália. Foram namorados quando Brasília ainda nem existia. Libório acabou se casando com Joana, “antigão” dizia estufado: “ ...minhas justas núpcias com Jo-ana...” Há um cinismo às vezes na elegância que muitos não toleram. Eu suporto e a mim me faz rir. Ria de Libório como ria do Castanheira até alguém rir de mim em escala sucessiva. Pois Libório cravou em mim seus olhos espantados colhidos de muitos anos de amizade sincera e desinteressada. O seu espanto: Ele a mais de quarenta anos casado e ela virgem de núpcias! Livraria do jugo. Estaria livre como andorinha ao sabor da primavera. Alegrão como o sabiá no quintalinho. Farto de bilhões de anúncios para casamento somados aos trilhões de processos de pensão que o Castanheira mostrava; soberbão, nos seus zelosos processos, calhamaços das infinitas aulas de Leis. A mim valia como sinal sagrado dos céus.

Saio do quintal para longe e temo retornar imediatamente. Na esquina atraio perdidos. Pela terceira vez informei a direção do viaduto da Borges para mulher totalmente maquiada. Depois uma pobre criatura me pediu dinheiro para o ônibus, nativa da Azenha. Chamei táxi num dia de alta generosidade. Com dificuldade observei a criatura acomodando-se no carro. Com lágrimas nos olhos lhe doei alguns tostões a mais ordenando ao motorista que desembarcasse a pobre senhora na Azenha de acordo com o endereço do cartão. Depois confuso compreendi que talvez não fosse certo o que fiz por ela. E se fosse apenas o dinheiro para o ônibus o que ela queria? Confundi tristemente mendicidade com velhice porque ás vezes os velhos marcam o seu caminho ao próprio estilo estético com maior liberdade. Querem ir de ônibus até a Azenha. Ir até a Azenha somente de ônibus. É ir de ônibus té-a Azenha. Um estado de coisa como numa lição de simplicidade. Por um momento temi ter reconhecido na bondade algo de estupidez sem a compreensão. Torci meu tédio e assobiei para dar dez passos curtinhos de gaiato e neurasta. Pela janela está Sebastiana voltando para casa com urgência.

Trata-se do último capítulo da novela no ar.