Nossa terra, nossas gentes ( ...o “teclado” e o Sr “periquito”)

Nossa cidade, Moçâmedes ao sul de Angola, tinha características bem próprias de cidade pequena e algumas delas bem divertidas como era o caso das alcunhas; muitos, muitos nick names e engraçadíssimos. Surgiam por motivos vários e muitas das vezes sem alguma aparente razão mas, a verdade é que pegavam no habitual do dia-a-dia dos moçamedenses e facilmente tomavam o lugar dos verdadeiros nomes.

Havia um menino na cidade de nome Pedro que convivia com um problema dentário pouco vulgar ao ponto de ser constantemente apontado nas ruas: os dentes da mandíbula superior eram exageradamente espetados para fora como coelhinho mas, o pior é que ninguém se dispunha a chamá-lo pelo carinhoso nome do bichinho ( talvez por já ser tão usual) e deram-lhe uma alcunha bem mais sofisticada : “o teclado”.

O coitado do Pedro já não tinha um amigo que o chamasse por seu nome próprio . Era só ele pôr um pé na rua que já vinha algum : “ó teclado pra qui ó teclado prá colá”.

Mas nem tudo era desgraça na vida dele. Marília , a minha amiguinha de infância, encantava-se com os dentes do garoto e achava que aquilo era dom especial.Que graça de menino! Era uma dádiva divina ter os dentinhos assim bem espetadinhos - pensava ela!

Pedro era para ela uma referência de beleza.Um dia, achando que poderia ficar tão linda quanto seu amigo tomou a inusitada decisão de sair à rua com os dentes para fora. E gostou! Firmava bem o lábio inferior e lá ia ela para o Colégio completamente realizada assim, igualzinha ao “teclado” . Quem cruzasse com ela nas ruas de Moçâmedes poderia ver uma menina feliz.

Ao “teclado” a minha amiguinha poupou a alcunha, mas não a um simpático senhor da nossa terra que era o proprietário de uma das mais antigas e tradicionais farmácias:o senhor “periquito”.

Era uma pessoa adorável , um bom homem ,muito querido por todos e que reunia sempre amigos à porta da farmácia para longas conversas ao meio da tarde enquanto trabalhava. Um olho na conversa e outro no balcão...juntava o útil ao agradável !

Mas,na verdade era um ponto da cidade que começava a tornar-se conhecido como o point das “novidades” da vida alheia. Ali se falava de tudo e todos e era o Sr periquito o linguarudo mor . Uma língua solta, mesmo, mas cuidava exemplarmente do trabalho enquanto contava “novidades" valia-lhe também a fama de farmacêutico exemplar.

Tempos antigos aqueles, épocas em que ainda não havia água destilada pronta para venda e portanto tinha de ser feita por farmacêuticos nas próprias farmácias . Usava-se um alambique aquecido a uma temperatura regular, um processo lento que exigia aquecimento contínuo e, assim, o Sr periquito dava "dois dedos" de conversa mas logo voltava à farmácia para ver se o alambique se mantinha aceso. Um dia demorou demais e meu padrinho , Dr Elias Trigo, um dos bons amigos do sr periquito que ali passava às vezes para lhe dar um abraço, entrou na farmácia à procura dele.Susto enorme!Coitado do farmacêutico! Estava sentado numa cadeira, esticado, morto. Teve um ataque de coração fulminante e ali ficou ao lado do seu alambique.

Correria para avisar a família e amigos e a noticia correu rápido pelos quatro cantos de Moçâmedes( afinal saiam dali as maiores novidades da terra).

Mas, como tudo na vida, havia "linguarudos" e "linguarudos" e alguns da terra davam, de casa em casa, a notícia nos seguintes termos :

- “ sr periquito mordeu a língua e calou-se”

A notícia do falecimento não chegou a tempo para um funcionário do meu padrinho que, em meio a uma tarefa urgente teve a necessidade de procurá-lo em casa. Bateu à porta e foi recebido pela filha, a minha amiguinha Marília , a única que ali estava naquele momento :

“ meu pai não está em casa não.Foi ao enterro do Sr periquito”

-“ ó menina Marília , ai que desgraça é essa! E ele morreu de quê?”

-“ não sei ao certo não, mas ouvi dizer que mordeu a língua”- respondeu ela.

E foi por pouco que a nossa terra não conheceu a 1ª causa- morte da história da medicina:

-mordida de língua.

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Lana

Lady Lana
Enviado por Lady Lana em 06/11/2020
Reeditado em 06/11/2020
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