OS TELEVIZINHOS

Meu pai quase que só comprava nas lojas Hermes Macedo S.A., e muito cortesmente eles lhe ofereceram um aparelho de TV para um período experimental. Como é sabido, no fim da década de 1950, teve início a transmissão de televisão em Curitiba. Era uma imagem horrível, que os aparelhos - com suas limitações - conseguiam deixar pior ainda.
Mandaram primeiramente uma Philco, um modelo cômico, constituído por um tubo de imagem descolado da caixa de válvulas, cujo único ponto de contato entre eles era um pino central rotativo. Os mais grisalhos hão de se lembrar desse modelo, parecia o busto de uma pessoa de ombros quadrados, sem orelhas, careca e com cara de lua cheia. Meu pai implicava com aparelhos da Philco, fossem rádios ou eletrodomésticos, e assim que a imagem apresentou um monte de chuviscos e começou a deslizar na vertical como um elevador em queda livre, ele contatou a loja pra que retirassem imediatamente aquele cacareco e trouxessem outro melhor.
Levaram-nos então uma TV Stromberg Carlson...outra bomba! Teve a petulância de apresentar uma imagem pior que a da Philco, e ao contrário da primeira, era repleta de botõezinhos, pra cima e pra baixo, pra direita e pra esquerda, do lado e em baixo, tinha que regular isso e aquilo, e quanto mais a gente mexia pior a imagem ficava. Apesar de tudo, nossos vizinhos amaram, e compareciam em massa pra conferir aquela novidade que iria fazer história. Um dos nossos amigos, o Alex, era muito observador e conseguiu localizar por detrás do vidro frontal que protegia o tubo de imagem, algo parecido com um farelo de pão. A descoberta virou gozação, e somada à imagem tão deprimente, foi motivo mais do que suficiente pra fazer com que esse aparelho fosse também rejeitado.
Vai TV, vem TV, até que pintou uma Telefunken. Elegante, móvel bonito de jacarandá, imagem firme e nítida. Foi essa que meu pai comprou.
E dali pra frente, nossa casa vivia cheia de pessoas que moravam próximas. Esse fenômeno acontecia também em outras casas que já possuíam TV, e esses vizinhos começaram a ser chamados de ‘televizinhos’, porque os aparelhos despertavam a sua curiosidade, e como naquela época as pessoas se relacionavam melhor, havia grande camaradagem entre a vizinhança e nem precisava um convite formal para que todos se sentissem à vontade pra surgirem à noite e irem se acomodando do jeito que desse, em função do elevado número de televizinhos presentes. Sentavam nos braços dos sofás e poltronas, nas cadeiras da sala de jantar; e esgotadas estas, eram trazidas as banquetas da cozinha e as cadeiras dos quartos, restando por fim o macio tapete da sala, onde se acomodavam felizes os mais novos em idade. Aquilo virou um cinema Paradiso, cheio de amigos e conhecidos, uma farra só, que mal permitia que se escutassem os diálogos e acordes musicais. Não raras vezes, se fazia necessário que um adulto da casa - com a paciência já esgotada - pusesse ordem no recinto, dando uma moral na rapaziada e proclamando um ultimato:_”Ou param já com essa algazarra ou acabou a brincadeira, escolham!”.
Quanto à programação, era bem variada. Na década de 1960, os filmes eram chamados ‘enlatados’, e vinham principalmente da Itália, com atores consagrados como Vittorio de Sica, Sophia Loren, Gina Lollobrigida, Amedeo Nazzari, Silvana Podesta, Rossano Brazzi e Elsa Martinelli. Havia também ótimos seriados americanos como Ivanhoé, Bat Masterson, Maverick, Papai Sabe Tudo, Família Walton, Dr. Kildare, Bonanza, Zorro, Perry Mason; e o brasileiro ‘Vigilante Rodoviário’. Havia ainda uma farta programação local, como os recitais com a soprano Claudete Ruffino, as mágicas do Xandu, os shows circenses dos Irmãos Queirolo, as entrevistas do Julio Rosemberg e do Moraes Fernandes, e o almoço dos artistas com a Meire Nogueira. Os esportes – principalmente o futebol - eram com Vinicius Coelho, Luiz Alfredo Malucelli, Carneiro Neto, e o Pascoale do bar do Passeio Público; e os noticiários aconteciam por conta de Aluízio Finzetto, Elon Garcia, Tônia Maria e Mario Bittencourt.
De quebra, as noites dos televizinhos foi uma maneira eficaz de fomentar a venda de novos aparelhos, porque a gurizada e as mulheres da vizinhança sentiam falta da programação quando não podiam participar, então persuadiam seus pais e maridos a também comprar um aparelho de TV. E o ritual prosseguia: a loja deixava um modelo para teste, experimentavam, pediam outro e mais outro, até se conformarem com um deles e botarem a mão no bolso pra consumar a compra.
Muito engraçado foi quando o Miguel, um piá vizinho, veio todo feliz contar que o Dr. Leo - seu pai - estava querendo comprar um bonito aparelho, com uma imagem boa, etc, etc. Perguntamos a marca e ele não soube responder, disse apenas que era um nome diferente, ‘americano’. Fomos conferir: era um Stromberg Carlson! Pra sorte deles, o Alex percebeu o farelo de pão dentro do vidro, e clamou estarrecido:_”Putz, é aquela mesma bomba que foi pra vocês, Ninão..!”. Hehehehe, disse isso na frente da mãe do Miguel. Logo mais à noite, o Dr. Leo foi até a minha casa pra esclarecer o incidente, pois estava a um passo de fechar negócio. Educadamente e cheio de dedos, meu pai lhe deu ciência que a aquisição do aparelho em questão seria uma calamidade, e que ele deveria devolvê-lo rapidinho e optar por outro de melhor qualidade. Porém...se de teimoso quisesse por que quisesse aquela marca, então que pelo menos exigisse um sem o farelinho de pão no vidro...kkkkkk.
(Marco Esmanhotto)
Marco Esmanhotto
Enviado por Marco Esmanhotto em 04/11/2020
Reeditado em 04/11/2020
Código do texto: T7103956
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