Jazz
O lixo se acumulava perto da pia
Comida estragada, bitucas de cigarro, baratas de estimação e várias garrafas de catuaba vazias faziam parte da indecoração
Minha tia, que hora ou outra aparecia pra trazer meu almoço,
Me pedia para que eu fizesse algum esforço:
"Tenha bom ânimo - você é tão novo!", dizia.
"Lave esses pratos, arrume essa bagunça, bote o lixo pra fora..."
Hoje é dia de coleta...
Mas na certa o que ela não sabia era que eu me sentia no fundo do poço, e não tinha forças tampouco pra me levantar, quanto mais lavar a louça...
"Nada me revigora", o silêncio respondia.
E dessa forma mais um dia se esvaía, mais um caminhão da coleta passava, mais um "dia de água" acabava - e eu não lavava as minhas roupas, mesmo não sendo na mão mas na máquina, e não resolvia nada...
Juro que eu tentava, mas um cansaço aterrador e maquinal me enterrava na cama,
De modo a parecer que eu estava em coma - padecendo; e me erguia, apenas, pra comer.
A velha apatia me impedia de fazer as coisas mais básicas do dia-a-dia...
E eu sou tão moço!
De novo o almoço
O sermão bondoso da minha santa tia
O caminhão do lixo seguido do carro do ovo
E de novo o velho de novo!
A morosa letargia
A falsa alegria nos status
O romance amoroso, de altos e baixos, com o feed
O desgosto estampado no rosto
E o mal-cheiro vindo da pia
Aliás, tudo ao redor fedia, fede...
Mas hoje vos trago uma boa notícia:
O jazz renovou meu espírito, que jazia morto, por ora...
Me estimulou a lavar os pratos, arrumar a casa, fazer um café forte e a botar o lixo pra fora...
...embora ainda eu me sinta um lixo por dentro - e frágil e ordinário como um frasco de perfume vazio, por fora...
Mas hoje foi realmente um dia extraordinário, pois conquistei uma grande vitória!
Mesmo que pequena, mesmo que simplória...
Devo essa a você, Miles Davis!
"Kind of blue" (na agulha)