Um verso, um momento

Folheio, por aqui, o livro Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade e, num relance de verso, me vem à mente a figura do Jackson. Não só a dele. Também a esposa Nara me chega junto, em doce reminiscência.

Às vezes, a aula já tinha começado, mas antes eu reservava a dupla de cadeiras para receber o casal. Um funcionário da faculdade subia com eles a escada e os deixava ali à frente da sala, bem perto de mim, onde se acomodavam e me ouviam.

Certamente conheciam o braile, mas não usavam a reglete para as anotações. Confiavam em suas lembranças. Eu é que tinha lá minhas desconfianças. Afinal, achava tudo aquilo muito complexo para quem não podia contar com a completa percepção. Pensava eu que alguns assuntos tinham exigido de mim razoáveis reflexões, muitas anotações, e a fluidez das aulas – se é que existia – vinha da experiência dos anos. E eles tinham de aprender minimamente tudo aquilo. O certo é que não devia medi-los por minha régua.

Mas era uma lição forte de vida assistir todas as semanas àquela mensagem de superação do jovem casal. Unidos naquela escuridão e na busca por luzes do saber. Lição para mim nas frustrações e fraquezas. Lição para os jovens, tantas vezes pouco ciosos de suas obrigações. Nunca soube se ficaram impedidos da visão pelos acidentes da vida ou se o acidente era um triste quinhão de nascença. Também não me preocupei em saber. Interessava-me em ajudá-los, no limite de minhas possiblidades.

A aula ia, corria, passava quase sempre depressa – com algumas participações do grupo. Discutíamos a língua, sua estrutura, o estilo de alguns autores, a escrita. Esses assuntos que são o menu básico dos professores de língua. Jackson e Nara me acompanhavam. Às vezes eu os cutucava, e nenhum dos dois se omitia.

Confesso que me preocupava. Sobretudo porque eles cursavam engenharia. Pensava eu nas dificuldades que sobreviriam, mas isso, realmente, extrapolava qualquer iniciativa minha. Cabia, sobretudo, a eles, saber o que estavam fazendo; e as aulas e o início daquele curso certamente estavam sendo um laboratório, que lhes permitiria o acerto de ponteiros.

Havia provas. Havia arguições. Peguei do gravador – desses que baixamos para o celular – e gravei todas as aulas para eles. Uma síntese de tudo o que dissera. Mandei-lhes por e-mail e percebi que eles ouviram de novo tudo aquilo, pois o resultado – se não foi excelente – autorizou-me a sacramentar, com o conceito apto, a passagem que tiveram por mim.

Não sei onde estão hoje. Não sei se continuaram seus estudos naquela área inicial. Imagino-os pelas ruas, usufruindo já um pouco dessa liberdade de presos, com suas máscaras a protegê-los da enfermidade que aterroriza. Certamente, protegidos por seu guia, estarão viajando mais felizes do que nós, cuja claridade destes tempos nos clareia o que não queríamos ver.

Jackson e Nara eram atentos – já o disse. Certa feita, falei de cor – acho que ainda o lembro – o poema ‘Aula de português’, do nosso Drummond. Falei com a ênfase e entonação possíveis. E ao final, chamei o Jackson:

– “O português são dois: o outro, mistério”. Entende o poeta, Jackson?

– Acho que o português são muitos, não apenas dois – ele respondeu. E acrescentou:

– E haja mistério.

Talvez eu estivesse certo nas minhas incertezas. Jackson tinha seus lampejos de humanista, e talvez achasse por ali o seu caminho. Quanto à Nara, eu já sabia que gostava de conhecer sobre leis. Que eles se encontrem! Lições eles já passam todo dia...