Radiografia

Será a próxima da fila, de fila não perfilada, fila numérica. Pernas solenemente cruzadas em direção à luz escura no fim do túnel. Olhar mergulhado na imensidão do vazio retangular de uma sala minúscula, que a separa do mundo dos vivos. Lá fora, a vida corre apressada e comercialmente: alguém acaba de perder o ônibus das 10h; outrem, ao sair do carro, esquece o filho dentro, mas não esquece de ligar o alarme do veículo; este outro alguém, acha tudo normal e, em meio a expediente burocrático postal, sela o fim do expediente, com dólar americano na casa dos R$ 5,77. Cá dentro, da sala minúscula e de frente para a luz escura no fim do túnel, vive uma moça aparentemente morta. Apesar de vestir azul piscina, do moderado rubor nas bochechas, da postura alegremente voltada à luz escura no fim do túnel, contrastando com o olhar mergulhado na imensidão do vazio retangular da sala minúscula. É a próxima da fila. Será que ela sabe? Não se sabe. Aposto, no entanto, que ela é paciente. A julgar pelo modo como acaricia o celular, como leva a mão ao fios encaracolados que parecem ter vida própria, como suspira diante do vazio da pequena sala minúscula. Nota-se paciência. Nesta pequenina sala, cujo centro dá para a luz escura no fim do túnel, todos, em menor ou maior gravidade, são, senão por força do querer mas por exigência de regulamento, pacientes. Percebe-se, até mesmo no passar das horas, tênue mansidão. Todos esperando religiosamente a vez, sua vez. É quando o painel luminoso apregoado à parede acende, em tom encarnado, um número, seguido de estrondoso ruído. A moça aparentemente adormecida cá dentro desta pequenina sala levanta-se com pressa, como se estivesse atrasada; recolhe o celular que leva à mão à bolsa volumosa; segue em direção à luz escura no fim do túnel... Mas antes, vai ao bebedouro, pede-lhe um copo, enche-o com água; abre a bolsa e retira um comprimido, leva-o à boca entreaberta, toma-o conjuntamente com um só gole d´água. O painel luminoso apregoado à parede volta a estrondar o ruído estrondoso, a acender, em tom encarnado, a ficha numérica. A moça azul piscina diz, em tom calmante: "Eu já estou indo.", e vai em direção à luz escura no fim do túnel. Para nunca mais voltar.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 01/11/2020
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