Nossa terra, nossas gentes ( ... visitas dos “importantes”).

Nós, das colônias portuguesas em África, tivemos várias visitas importantes ,cheias de glamour, e também a nossa terra Moçâmedes ao sul de Angola assistiu com pompa .

Se monarcas portugueses não conheceram as colônias em África depois, no Estado Novo, pelo menos 3 presidentes nos visitaram: Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Thomaz , visitas minuciosamente programadas e preparadas a dar uma imagem da soberania de Portugal perante a opinião pública nacional e internacional. Eram visitas às colônias ultramarinas impregnadas de propaganda à solidez do poder, e nós lá estávamos que nem carneirinhos domados em meio a todo aquele aparato.Eram centenas de bandeirinhas por todo o lado, alunos de todos os estabelecimentos de ensino impecavelmente uniformizados e em forma, professores e gestores de órgãos públicos enfileirados, hino nacional ensaiado e repetido durante meses até à perfeição. Um aparato de detalhes num clima de festa onde nada podia ser negligenciado. Também os negros compareciam em grupos bem treinados( era conveniente levar essa imagem para o exterior) , mas tão festeiros que eram que de repente se animavam por conta própria e surgia alguma surpresa: naturalmente alegres quando se deparavam com o clima festeiro de certos eventos e nada nem ninguém os continha.

Integrados a uma rotina social assumiam costumes e rotinas sociais e dentro de habitual inocência pacifica nem se apercebiam daquela subserviência aos que os colonizavam e lá estavam eles nesses momentos levantando bandeirinhas para o presidente da República e empinando as cabeças para melhor o verem.

Num desses eventos lá estava o presidente Craveiro Lopes impecavelmente posicionado no alto das escadarias do Palácio do Governo ali no alto da marginal da cidade , e um grupo de negros a tentar avançar para melhor participar da homenagem . Conseguiram finalmente um lugar mais à frente e ouviu-se então a cantoria de um só refrão, mas era a animação que queriam:

“ chegamos às porta do palácio para cumprimentar o nosso presidente , e Vivó vivó vivó Benfica”

Todo o mundo desatou à gargalhada e há quem diga que nem Craveiro Lopes , junto a toda a sua comitiva, conseguiu disfarçar o riso.

Os negros eram observadores e animadíssimos para inventar refrões . Tinha espírito de humor e não perdiam a oportunidade de critica embora que muitas vezes disfarçada . Havia um grupo de funcionários na SOS, Sociedade Oceânica do Sul, que sempre se divertia muito ao ver o “engasgar” das carrinhas de trabalho na íngreme subida que ali havia em frente à fábrica: a celebre ladeira da SOS na subida da marginal para a entrada da Torre do Tombo, e criaram um refrão divertido em critica à qualidade da gasolina dos brancos;

- “ a carrinha da SOS não trabalha com gasolina , só trabalha com sanguinhal”

Sanguinhal era o vinho mais consumido por eles.

Ao recuarmos no tempo hoje conseguimos perceber que alguma coisa teria de mudar um dia. Os negros não poderiam continuar eternamente renegados a valores de cidadania e mesmo ao aceitar essa exclusão sem conflitos , seria insustentável em termos de desrespeito às igualdades.Mas a despeito de todos estes problemas havia sim, uma convivência muito sã dentro das nossas casas, uma relação de respeito e fidelidade tão melhor quanto lhes era permitida uma maior ou menor proximidade com a família.

Curiosamente, naquela época era muito comum ter-se papagaios em casa e normalmente eram os negros que os conseguiam.Compravam de nativos que os traziam para as cidade e depois revendiam . Minha madrinha também tinha um mas como não gostava de ver pássaros em cativeiro um dia pediu ao cozinheiro Sebastião que o levasse para algum lugar onde pudesse deixá-lo em liberdade. Sebastião estranhou o pedido mas levou o papagaio com ele. No dia seguinte aparece muito feliz com 120 angolares na mão, quantia alta para a época:

-“ patroa, vendi o papagaio e aqui está o dinheiro . A patroa ficou sem ele mas não vai ficar sem seu dinheiro, não”- disse-lhe ele .

E era assim a relação em ambiente familiar.

Um dia, meus avós receberam para jantar um veterinário recém chegado a Angola e que teve de ir a Moçâmedes para aprimorar estudos sobre pesca . Um homem negro.

Grandes preparativos na cozinha, cozinheiro com a comida pronta, criados de mesa a postos , todos à mesa e... nada de comida! Minha avó já aflita olha para a porta entreaberta e só vê aquelas cabecinhas todas espreitando com muita risada .

Todos ali parados a olhar para o convidado.Nunca tinham visto um doutor negro sentado numa mesa de brancos.

-“ Mas então, o que estão a fazer aqui parados à porta e não trazem as travessas?”- perguntou-lhes minha avó.

-” senhora, desculpa senhora, desculpa, mas hoje vamos esperar o patrão dar ordem .Só o patrão pode .A gente quer ouvir ele falar que está tudo certo esta noite na casa da patroa.”-responderam eles.

E assim foi.Meu avô entendeu e agiu prontamente: uma revirada de olhos, um aceno com a cabeça e a ordem para se servir o almoço foi entendida .

Um jantar à altura na casa do Dr Carneiro e uma noite perfeita apesar da surpreendente visita !

Lana

Lady Lana
Enviado por Lady Lana em 01/11/2020
Reeditado em 01/11/2020
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