O futebol é desencanto
Lembro-me como se fosse hoje o primeiro título que comemorei do meu clube. Foi a primeira experiência que tive com essa tal felicidade, o gosto tão doce e tão passageiro que dura o suficiente para esquecer toda dor e sofrimento, e essa mínima alegria era o suficiente para amar o futebol. Ah! Como adorava o futebol!
Aprendi o gosto pelo futebol com o meu pai, ou talvez, já tenha nascido predestinado a tal paixão.
Meu pai, trabalhador e operário de fábrica. Saiu da roça para “ganhar a vida”. Não estudou como o craque do seu time, talvez por isso se identificasse tanto com ele, não sabia de sua vida pessoal, apenas chorava e comemorava cada vitória daquele semelhante...
Rádio no ouvido, nem todos tinha televisão, isso era coisa de rico, gritar gol era um alívio para mais um dia sofrido. O futebol era alegria, alívio para a dor de viver.
Lembro-me da primeira copa do mundo, ah que alegria maior ainda, agora não se tratava de heróis de um grupo, eram heróis da nação, era como se eles estivessem ali por nós, representando o povo brasileiro, batalhadores e sonhadores.
Muitos daqueles craques estavam pela primeira vez em outro país, sentíamos a simplicidade da alegria de cada um deles. Ah futebol só você para nos conectar aos nossos semelhantes.
Hoje meu pai não trabalha mais no chão de fábrica, aposentou praticamente com o mesmo salário. Batalhou como tantos e tantos brasileiros, mas o velho rádio no ouvido não traz mais a emoção do gol, o jogo é morno, e tem mais propagandas do que a velha narração emocionante de outrora, e o craque do time mudou semana passada, foi para um clube que meu pai não sabe pronunciar o nome, na verdade mal lembra o nome do craque, foi embora cedo, segundo o jornal, foi por uma boa grana, meu pai desligou o rádio, estava chato demais o jogo de hoje, sem craque, sem emoção, mais um dia se foi.
Saudade de quando o futebol era “SÓ PAIXÃO”! Um momento de alienação para as mazelas da vida. Onde o craque do time suava a camisa e para mim era um simples herói. A vida foi dura desde o início, mas parecia justa. Afinal aquele craque também sofria em campo para obter a sua vitória e isso parecia belo aos meus singelos olhos. Enquanto isso trabalhava como o meu pai, para merecer algo melhor, pois aprendi que cada um tinha o que merecia.
Saudade de quando isso parecia verdade. O futebol era só paixão e não um retrato triste e real da vida! Hoje, ao invés de alienar, o futebol escancara a desigualdade social que antes parecia não existir. Hoje o craque não corre, não estuda, não tem identificação nenhuma com o torcedor, porque vai embora cedo, fecha o contrato milionário, e continua suando pouco. Isso é quase uma apologia a preguiça, a desigualdade e ao parasitismo. Para que produzir, correr, doar-se demais ao clube, estou de passagem, em breve ganharei mais dinheiro em outro clube. O mínimo esforço é recompensado com o máximo salário.
Agora assistir o meu clube jogar é assistir pessoas que não respeitam o cidadão comum que trabalha o dia inteiro e quando quer uma distração (para esquecer o qual difícil foi o seu dia) tem que assistir o sonolento “espetáculo da preguiça” que sem dizer uma única palavra, diz muita coisa... Não estão nem aí para as pessoas que estão ali torcendo para que algo mínimo de bom aconteça e que dê uma alegria mínima a essa vida tão sofrida. O Brasileiro tem uma qualidade que prioriza muito no esporte, nós valorizamos o sacrifício, perder no esporte faz parte, mas ver um time que perde sem se importar, é insano, fere a honra, a dignidade, e o caráter, e escancara ainda mais a dor de enxergar a mentira que tanto acreditei sendo desnudada... NEM TUDO É MERECIMENTO.
Antigamente a paixão, a glória, a garra dos jogadores encobriam os números, hoje com a sonolenta vitória ou a preguiçosa derrota, os números ganharam mais notoriedade, e a pornográfica desigualdade é como um tiro no peito daquele velho senhor com o rádio ligado esperando ouvir a escalação do seu time. Não meu velho, você não foi escalado, eu também não.
Quando a fé falha e a bola não entra, só nos resta a dor de um mundo desigual, onde o craque não dá a mínima para o clube do coração, onde a bola tem a marca do patrocinador, e o gol não consegue apagar as marcas da vida desigual, pois o craque não representa o torcedor, representa uma marca que paga milhões e milhões de dólares.
Agora só resta a vida sofrida. Continuamos na luta para vencer, mas dessa vez, sozinhos, sem o escudo do clube, pois agora isso também virou marca.
Ver o meu time jogar é sofrer duas vezes!
Não, não, não... nem tudo é merecimento.
Bola pra frente, a luta continua, mas sem a estupidez de acreditar que a desigualdade é uma recompensa, não, infelizmente ela é um projeto que o futebol desnudou.
O futebol não é só paixão. É vida real, como ela é.
Futebol é desencanto!
Às vezes, o preguiçoso ganhará mais que o esforçado e o trabalhador.
Futebol não é mais parâmetro, então, o que pode ser?