Kafka e os dias de hoje
Vi uma notícia que a televisão já esqueceu, mas que me impactou bastante. Eis o caso: um funcionário morreu num supermercado do Recife e gerente cobriu o corpo do homem com guarda-chuvas até que a perícia chegasse. Fico pensando nas pessoas que passavam pelo local, nos outros funcionários, na família do representante de vendas e penso em Kafka. Penso em como a literatura é a forma mais antiga e mais legítima de ver o mundo.
Lembrei especificamente de “A metamorfose”, a famosa novela kafkiana. Gregor Samsa era caixeiro-viajante. De repente, ele acorda de manhã
e percebe que foi transformado em uma barata. A situação bizarra incomoda o leitor, mas não faz a menor diferença para os personagens da trama. Lembro da irmã chutando a barata para debaixo da cama, do gerente questionando a falta de Gregor ao trabalho; no entanto, nenhum deles atentar para o fato inusitado de uma pessoa ter se transformado em um inseto da noite para o dia.
Naquela época eu era pouco habituado com metáforas, mas hoje entendo bem o livro. Penso em quantas pessoas atropeladas pelo sistema. Pais e mães de família que trabalham sem ver os filhos, mães que sofrem para conciliar trabalho com a creche. Trabalham de segunda domingo. Entram no expediente, saem, deitam na cama mortas de cansaço e usam o tempo livre para dormir ou ver televisão. E, no caso de homens como Moises, têm o corpo encoberto por sombrinhas para que os clientes não percebam e o supermercado não perca lucro. Nada mais kafkiano do que isso.
Recebi “A metamorfose” de Kafka em Belo Horizonte. Eu desci do ônibus no ponto da Igreja São José, na altura da Rua dos Tamoios, quando vi um rapaz empilhando livros no muro da igreja e resolvi perguntar por quanto ele estava vendendo. Ele me contou que não estava vendendo, mas doando para quem quisesse ler. Nunca me esqueci do sorriso dele me pedindo para escolher um e da minha felicidade ao ter conhecido o famoso escritor Tcheco nessa situação. O cara não quis vender por uma ninharia no sebo, mas presentear jovens leitores como eu.
O texto kafkiano não me traz melancolia em relação ao caso do Moises, mas me deixa feliz pelo fato de o livro ainda continuar oferecendo aos leitores até hoje a consciência de que existem seres humanos que não se dão conta de que estão virando baratas. Enquanto houver gente que ainda enxerga e se incomoda com isso penso que estaremos num bom caminho. Melhor do que assistir ao noticiário com olhos frios e acostumados.