Periquitos

Gosto de ouvir a musicalidade da vida para esquecer os periquitos do vizinho. Eu mesmo tive um viveiro com dezenas deles por certo tempo. Comecei a enlouquecer pelo motim que fazem no cárcere que lhes dei. Mal brilha a primeira luz tímida e a orquestra infernal recomeça. Tive certeza de que era a única manifestação cabível contra meu egoísmo capitalista. O fato de prover alpiste regularmente, limpar o cativeiro e lhes dar água potável resulta senão em minha própria escravidão. Para viajar se tornou indispensável contratar alguém para substituir minha mão-de-obra escravizada.

São bonitinhos e até engraçadinhos. Tive um periquito-australiano que vinha me beijar quando abeirava a gaiola. Mal abria a porta do pequeno presídio e ele voava para meu ombro. Ficava um pouco ali e em seguida seguia para o topo da minha cabeça. Esse ridículo a que me expunha alegrava crianças e deprimidos do bairro.

Ficou famoso na vizinha por isso lhe dei o nome de Abelardo. Morreu graças ao fatal esquecimento a que expus a sua vida. Há um ponto em que ninguém mais liga para os cativos. Retornei tarde do chope, assisti a um programa de variedades; decidi comer macarrão com “toucinho fumado” antes de cair de vez na cama. Foi uma noitada estupenda onde sonhei com flores e abundância de pecados. Tudo isto enquanto caía a temperatura e o infeliz Abelardo morria congelado no quintal.

Depois dele tive o viveiro com dezenas deles. Era bom vê-los num corropio frenético de um poleiro para outro. Preenchia com vida a varanda das cadeiras vazias. Percebemos com o tempo que nada silenciava esses pássaros. Nem a presença do gato, nem meus protestos de silêncio foram úteis a ponto de interromper o charleio alucinado. Por isso decidi soltá-los numa tarde sem visitas.

Agora planejo liberdade aos periquitos do vizinho. Detenho-me; cauteloso, preso ao temor de que João os substitua por uma araponga.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 28/10/2020
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