SANTO ÂNGELO: BRIGA ENTRE IRMÃOS
SANTO ÂNGELO: BRIGA ENTRE IRMÃOS
Na época que minha família foi morar em Santo Ângelo, Rio Grande do Sul, não havia nada em comum entre os estados brasileiros. Os valores, os costumes, os nomes de objetos, frutas, carnes, praticamente tudo era diferente. Desembarcamos na estação ferroviária no dia em que minha irmã Yeda completava quinze anos, nove de dezembro de 1951. Ela nem imaginava que seria a cidade onde que passaria sua vida e reside até hoje. Fomos morar na Rua XV de Novembro, no centro da cidade. Era uma casa boa com a porta de entrada direto na calçada, com três quartos, grande quintal, uma garagem lateral descoberta que possuía ligação com a sala. Cozinha com fogão a lenha, uma sala de jantar ao lado. No quintal havia alguns pés de frutas: pêra, figo, caqui chocolate, laranja, vergamota (tangerina para quem não é gaúcho), e uma pequena horta. Minha mãe contratou uma moça de nome Ângela para ajudá-la nos trabalhos de casa. Minha saudosa irmã Maria Luiza, com 10 meses, era uma pessoa com Síndrome da Down e exigia mais cuidados que os bebes normais. Com seis anos e já interagindo com meus irmãos Yeda e Henrique, guardo momentos e fatos na memória muito interessantes. O Henrique foi matriculado em um colégio dos Irmãos Maristas, ia para as aulas de farda cáqui, e usava até quepe. A Yeda estudava em um colégio de freiras e era muito aplicada, estava iniciando o curso Normal do Magistério. Era uma moça muito linda e participava de desfiles, lembro de uma foto dela com uma bola na mão, desfilando em uma passarela no Clube que freqüentávamos. Meus irmãos, ambos em plena adolescência, protagonizaram cenas inéditas, umas hilárias e outras nem tanto. Meus pais acompanhavam a Yeda aos bailes, ela participou de um baile de debutantes, costume que na época era obrigatório para as moças. Era a apresentação das jovens à sociedade, quando completavam quinze anos. Elas aguardavam o evento com grande expectativa, encomendavam vestidos de baile, os pais a acompanhavam com roupas vistosas. Os pais dançavam a primeira valsa com as filhas, era uma solenidade marcante na vida das mulheres, uma espécie de formatura social. O meu pai comprara uma pequena tulha de madeira para guarda de feijão e arroz que a gente comprava a granel. Aos finais de semana meu pai ficava com uma van do Exército e nos levava para visitarmos propriedades rurais próximas à cidade que produziam frutas, cereais, vinho, e abastecia a casa. Todos os dias de manhã passava a carroça do leiteiro, cheia de grandes latões de alumínio. Não lembro o nome do leiteiro, como era baixo a gente chamava de Leiteirinho. Ele descia da carroça com uma grande caneca de alumínio e o freguês pedia quantos litros queria. A caneca possuía marcas de meio em meio litro e Leiteirinho colocava do latão até a marca da quantidade pedida. Assim era com o padeiro. A carne a gente comprava do Exército que descontava dos salários a quantidade fornecida. Todos os dias saia do quartel um caminhão com dois ou três soldados levando diversos grampos grandes de alumínio, cada um destinado aos sargentos e oficiais com a carne solicitada. Esses grampos eram semelhantes aos grampos de bebês, mas com uns vinte e cinco centímetros de tamanho. Tinha dias que meu pai me levava ao quartel e eu acompanhava os soldados na entrega das carnes. Era muito divertido. A gente ia de casa em casa entregando carne. Quem conhece soldado pode imaginar a confusão que dava. Entregavam carne errada, trocavam o pedido, as esposas reclamavam muito. Para mim, era uma aventura. Lembro de uma das entregas que o soldado era novato nesse trabalho. O caminhão parou, o soldado veterano entregou a carne para o novato. O rapaz desceu do caminhão e bateu palmas. Era uma casa no meio de um terreno cercado, e ninguém atendeu. Na terceira tentativa sem resposta, da carroceria do caminhão o veterano mandou o rapaz entrar, dizendo que era assim mesmo e o novinho obedeceu. Abriu o portão e quando estava próximo à casa aparece um cachorro pastor alemão furioso correndo a latindo na direção do entregador. Ao ver que seria alcançado antes de chegar de volta ao caminhão, o rapaz saiu correndo e subiu em um pé de laranja com tronco liso que ficava no meio do caminho. A velocidade com que o cara subiu uns três ou quatro metros até alcançar a copa da laranjeira foi impressionante. A carne havia caído no chão, a cachorro começou a cheirá-la, depois de um minuto aparece a dona da casa. A mulher apanhou a carne com um safanão, pegou o cão pela coleira e voltou para a casa. O rapaz só desceu depois do cachorro preso. Foi muito engraçado.
Na hora do almoço, a Yeda, por ser mais velha e mulher, dizia ter direito ao melhor bife e ser a primeira a se servir. Eu, então caçula, não dava palpite, só ficava os dois se digladiarem. A Yeda então inventou uma maneira de garantir a melhor porção de carne. Como ela comia a salada e o Henrique servia-se direto da carne, ficava para a minha irmã pedaços que não eram os melhores. A partir de certo dia, antes de se servir da salada, Yeda pegava o melhor bife, lambia inteiro e o colocava em um canto da travessa. Quando eu ou Henrique ia servir de carne, ela já avisava: “-Esse bife ta lambido! Não pega!”. Era muito engraçado. A Yeda tinha o que a gente chamava de “mão leve”, pois em qualquer conflito ela já ia dando tapas no Henrique. Essas brigas duraram algum tempo. O Henrique já havia completado treze anos, crescera. Certo dia começaram a discutir e Yeda começou a estapear o Henrique. Ele avisou: ”- Vou te bater!”. Ela não deu bola e continuou com os tapas. Henrique avisou mais uma vez e, não tendo resposta, desferiu um soco no queijo de nossa irmã. Yeda ficou tonta e caiu sentada na tulha. Nunca mais brigaram.
Paulo Miorim, 25/10/2020