AGORA JÁ POSSO ABRIR AS PORTAS
O sol estreou tímido naquela manhã de primavera. Acordei com a orquestra dos passarinhos nas árvores da rua António Leandro. Da janela lateral do meu quarto, tinha uma visão ampla das coisas, o céu carregado de nuvens grafite, as poças de água formadas pela chuva da noite, o mato crescido no terreno baldio, as montanhas quase verdes sob o vapor acinzentado e o silêncio natural da vila. Tudo sugeria paz, mas no meu coração havia um vazio, uma coisa ácida como o bagaço de limão na caipirinha, um espaço oco, quieto, indefinido e cheio de conformidade. Minhas mãos tinham urgência para registrar meus pensamentos em movimento e a lembranças dos últimos dias. Pensei em escrever uma crônica para não esquecer os detalhes da história; e também pelo merecimento por tanta alegria e paz que ela, a Nina, nos proporcionou todos estes anos. Nina era uma gata diferente, não foi presente nem doação, ela foi encontrada por baixo das estacas na rua Antônio Ricardo, numa noite chuvosa. Quando chegou, ninguém a queria, mas com o passar dos dias, todos da família a acolheu com carinho, cuidado e respeito que todo bichinho merece. Era brincalhona, namoradeira e cagona, adorava brincar de esconder por baixo dos tapetes e sacolas. Treze anos se passaram, era feliz aqui com sua liberdade de gatos da roça, as vezes saia no cio, sumia vários dias, mas sempre voltava, mais magra, com os olhos brilhantes, com fome e com a barriga cheia. Nos últimos anos e depois de velha, Nina parecia mais ajuizada, mais quieta, não queria mais brincar, me olhava com cumplicidade, não estava nem aí quando eu falava com ela como se falasse com um bebê, mas quando queria leite ou ouvia o som da ração no pote, saía correndo em minha direção. Nos últimos meses estava tão caseira que não saia mais nem pra cagar. Um certo dia, ela apareceu com um pequeno ferimento e a partir daí foi só sofrimento, para a família e para ela. Tudo foi feito: veterinário, antibióticos, pomadas, babosa, óleos e chás, mas a ferida continuava cada dia maior, viva e fedorenta, crescia descontroladamente. Ninguém suportava seu cheiro de carne podre, que incomodava até as moscas. As portas que sempre estavam abertas, se fecharam para ela. O único espaço que ela tinha acesso era o quintal, a garagem e as varandas, e mesmo assim, seu odor terrível invadia as narinas de todos. Era insuportável, coitada! Estava se decompondo viva. Não havia mais o que fazer, o câncer a comia sem piedade. Depois de quase um mês de sofrimento, decidi concordar com o marido em sacrificá-la. Os homens da Secretaria de saúde ambiental foram chamados. Tudo estava pronto para a injeção letal. Colocaram-na numa caixa de papelão fechada com durex. A olhei com tristeza e remorso, me senti uma assassina sem coração. Ela me olhava como se soubesse de tudo, e sabia. Vi o carro branco da saúde virar a esquina da minha rua, sentei na calçada com o coração apertado, uma vontade de chorar danada, um sentimento negativo, uma sensação de morte, velório e sepultamento, ou derrota do Brasil na copa do mundo, sei lá. Fiquei ali uns cinco minutos, quando de repente avistei o carro dos homens da saúde voltando. Levantei depressa porque um dos homens estava vindo em minha direção, meio sem graça, com a caixa na mão e imediatamente respondendo minha pergunta muda: Caramba!!! Ela escapou. Disse ele com um sorrisinho tímido. “Como assim? Disse eu. Nem eu sei... disse ele. Sem responder, caminhei na direção da rua onde ela havia pulado do carro. Perguntei por ela, a procurei por um bom tempo e nada. Já estava de volta para casa quando me disseram que viram uma gatinha preta e branca pular do carro em movimento e que se escondeu na cozinha de uma igreja evangélica. Pronto! Tinha uma pista, mas não a encontrei, A procurei por três dias e nada. Os homens se foram e voltaram, mas Nina havia desaparecido. Deve ter morrido, coitada! Disse o homem. E se foram. Também acreditei, pois seu estado era lastimável. A procurei nos quintais, nos matos, nos telhados, nos rios... em vão. Perguntava as pessoas se tinha visto uma gatinha preta e branca com uma ferida nas costas e contava a história, mas ninguém a tinha visto. Pronto! Deve ter morrido mesmo, o jeito era me conformar, e além do mais, ela não estava mais sofrendo, agora já posso lavar todo os vestígios da sua presença, agora o que me resta são as fotos e as lembranças. Pensava eu.
Se passaram vários dias e nas horas mortas da noite, eu tentava ouvir algum miado, mesmo fraquinho ou um barulhinho na janela. E acreditem, naquela mesma noite, ouvi seu miadinho fraco, um pedido de socorro. Desci devagar as escadas, já sentindo seu cheiro de morte no ar, coloquei três mascaras “da pandemia”, e mesmo assim o cheiro continuava. Sempre deixava um pedacinho da janela aberta pensando na sua volta, e foi por ali que ela entrou e deitou sobre as almofadas. Antes de envolvê-la com a toalha, iluminei sua ferida com a lanterna do celular, fiz vômito várias vezes, prendi a respiração e a peguei no colo. Subi rapidamente a escada que dava para a varanda arejada. A coloquei carinhosamente no cantinho sobre o papelão e enquanto descia as escadas para buscar leite, ração e água para ela pensei: Não é possível que ela vai fugir no estado que está. Conversei com ela como fazia sempre. Ela cheirou o leite antes de dar umas duas lambidas, ela sempre foi cuidadosa com o que comia, foi esta a principal razão de viver tanto tempo. Era tarde, mas telefonei para os rapazes da saúde ambiental, para que viessem bem cedo. Fechei todas as portas, tomei um banho da cabeça aos pés e consegui dormir. Acordei cinco da manhã com o pensamento na gata. Saí com cuidado, bem devagar, mas para minha surpresa, Nina havia fugido mais uma vez. Como fui burra! Pensei eu. Por que cargas d`águas não a prendi? Mas sinceramente, nunca imaginei que ela teria forças para sair dali.
Pois é! E agora José? Nina desapareceu mais uma vez. Como não desisto nunca, continuei minha via crucis à procura da minha gatinha, mas não a encontrei. Passaram- se mais seis dias, dessa vez tinha certeza da sua morte, pois seu estado era lastimável, estava caindo aos pedaços, literalmente. À noite, eu acordava pensando o porquê de tanto sofrimento? Onde ela estaria agora e como estaria? Será que algum gato solidário estaria com ela, dando apoio, uma força por causa do seu sofrimento? Afinal, bichos não são preconceituosos. Bicho não deveria sofrer.
Minha esperança de vê-la outra vez acabou, estava até conformada e aliviada. Quem sabe agora ela estaria descansando nos verdes prados e campinas, no paraíso dos animais, ou no colo de São Francisco de Assis?
Um grito interrompeu meus pensamentos, era o filho do vizinho dizendo: coooorre que sua gata apareceeeeu. Tá na nossa garaaaaagem. Pensem na minha reação e na minha cara! Me paramentei RAPIDAMENTE e fui. Desci as escadas com a esperteza de uma adolescente, com máscaras, luvas de sacolas, toalha e a gaiola para gatos.
Ela estava perto do motor do carro. Miava triste e fraca. A levei para a varanda enquanto o maridão telefonava para a secretaria de saúde ambiental, distante trinta e oito quilômetros. Chegaram duas horas depois. Saí de casa, não queria vê-la partir para a morte outra vez. Assim foi a história de vida da Nina. Prometi registrar todo este sofrimento para nunca mais adotar gatinhos fofinhos aqui em casa. Sei que não vou esquecer desta querida que trouxe tanta alegria para a nossa família. AGORA JÁ POSSO ABRIR AS PORTAS.