Enquanto o meteoro não vem

Estou aqui pensando, após ver uma notícia alvissareira que diz respeito a possível chegada de um meteoro à Terra, que, se configurada essa possibilidade, em breve não precisaremos mais usar máscara. Estaremos todos findados, e iremos fazer parte do reino encantado dos nossos ancestrais dinossauros. Embora seja extraoficial, não deixa de ser promissor saber que nosso fim se dará por meio não belicoso. O Capital desagrada-se: prever perdas monetárias, queda na taxa de juros e recessão. Almeja entrar com Mandado de Segurança contra essa chegada repentina do aguardado meteoro.

De minha parte, não me oponho, e, enquanto o meteoro não vem, fico aqui pensando que é melhor continuarmos usando máscara, pois a Covid-19 anda voando por aí, aqui, acolá. Depois que a grande pedra passar, a gente abandona essa recomendação. Não precisaremos mais de máscara nem de muitas outras necessidades do mundo de hoje. Será o fim das filas, das lições de álgebra, dos falsos e sinceros elogios, das boas e más notícias; terão fim o efeito estufa, os engarrafamentos, a Ponte Rio-Niterói. Estaremos todos salvos da promiscuidade dos dias, tais quais estão os nossos antepassados dinossauros. Terá fim, finalmente, a globalização.

Quando a grande pedra descer do reino encantado dos dinossauros, talvez me encontre mascarado e feliz, ainda que em plena fila bancária, engarrafamento graduado, em solilóquio, todo comportado, sem levantar suspeitas. Talvez, entre o embarque e desembarque, a grande pedra permita-me o último desejo de perdição. O que vou querer ainda não sei. O fim da fome, do conflito entre Israel e Palestina, a justiça social já não farão sentido em um mundo desabitado. Esquecer que os bípedes são cruéis já não fará sentido. Assim, meu último desejo de perdição talvez seja ironicamente está ''on''. "Online" para o começo do mundo.

Enquanto o meteoro não vem, sigo usando máscara. É a recomendação e convém acatar. É fato que, quando a grande pedra passar, serão desnecessárias as máscaras. Ninguém vai usá-las mais. O mundo ficará todo desmascarado, e eu não estarei aqui para vê-lo. Logo agora que estava me acostumando a elas; logo agora que descobri umas de suas melhores funções, que são a capacidade de ocultar solilóquios e a de impedir o roimento abusivo de unhas. Ando por aí, aqui, acolá, falando comigo mesmo, numa alegria só, e não sou descoberto. Quanto às unhas, a máscara impede avanço involuntário à dentição, o que contribui para a vendagem de cortar unhas e, por conseguinte, fomenta a indústria e a geração de renda. Tudo isso, claro, até o momento da chegada da grande pedra...

Depois, indústria e renda serão inúteis, como será inútil essa Brastemp que mãe limpa agora. É um zelo dengoso de ver que mãe nutre por essa Brastemp. Hoje é sábado e, como consta no regulamento semanal de limpeza doméstica, é dia de zelar da Brastemp. Mãe ainda não sabe da notícia sobre o meteoro a caminho da Terra. Melhor assim. Enquanto ele não vem, ela pode limpar com todo dengo e cuidado sua Brastemp, acreditando na bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, na ressurreição da carne, na Vida Eterna, Amém. E quanto a mim, enquanto o meteoro não vem, posso passar-lhe um recado, tipo: "Grande pedra, chama no zap, o pai tá on".

Enquanto o meteoro não vem, vamos tentar rir, porque depois que a grande pedra passar, não se sabe o que restará. Talvez só o essencial: o tudo e o nada.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 24/10/2020
Reeditado em 24/10/2020
Código do texto: T7094926
Classificação de conteúdo: seguro