O ÚLTIMO DOS VELHOS

Teca fechou o livro e olhou para os lados com aquela felicidade estampada no rosto querendo compartilhar sua alegria com algum passageiro. O ônibus deslocava-se para o centro. Ninguém olhou para ela, todos concentrados na tela do celular. E mesmo que a olhassem, a máscara de caveirinhas lhe cobria o sorriso. O uso de máscara era obrigatório devido a pandemia que assolava o mundo. Teca ficou resignada segurando firmemente o livro repousado em suas pernas.

O ônibus foi ultrapassado por vários carros em alta velocidade, era a polícia com suas luzes piscando e sirenes estridentes, que incomodava os ouvidos sensíveis de Teca.

Vendo os vários carros da polícia alvoroçados, Teca lembrou do café da manhã. Como de costume seu pai ligava diariamente a TV no jornal matutino para acompanhar as notícias. Ela estava de saco cheio de só ter notícias policiais, via raramente a previsão do tempo. E ultimamente o homem do tempo não acertava nenhuma, não previu para a capital dos pinheirais e dos quatros climas num dia só, que estaríamos assoladas por um calor atípico neste inverno e ainda acompanhado de uma seca inesperada que provocava rodízio de água nunca visto na cidade. O apresentador em seu terno sob medida será que havia falado “... a polícia nas ruas com uma grande operação...”?

Sua atenção foi desviada para o barulho chato e insistente de um celular que tocava a todo volume. Barulhos e sons se acumulavam, isto a enraivecia, seus frágeis ouvidos sofriam. Os passageiros olhavam de um lado para outro para procurar o incauto dono do aparelho. Era uma passageira sentada a frente de Teca. Teca analisou a elegante senhora de cima abaixo e ela destoava do restante dos passageiros, estava muito bem vestida para andar de ônibus: salto alto e fino, saia e blusa social chiquérrima, na mão anéis de brilhantes e de ouro reluziam com o sol escaldante. No braço, pulseiras com pendentes que deviam valer mais do que ela ganhava como atendente de telemarketing no ano inteiro. A maquiagem discreta e perfeita escondia a idade real. Da bolsa de grife ela tira um iphone 12 e diz firme e seca:

- que você quer? Sua voz soava autoritária. - pegue o último dos velhos!

A frase ecoava na cabeça de Teca “pegue o último dos velhos...”, “...o último dos velhos...”, “...velhos...”, “...idosos foram encontrados mortos...”. Remexeu sua memória e lembrou de uma repórter de blusa amarela e que o vento teimava em esparramar seu cabelo, falando que “idosos foram encontrados mortos”. Mas não lembrava direito, não prestara atenção. Flashes da repórter surgiam em sua cabeça. Trechos indecifráveis. Será que ela falou que um velho sobreviveu? ou será que disse “...idosos foram encontrados abandonados ...”?. Várias hipóteses surgiram na cabeça de Teca.

- acabe com o velho primeiro!... Já disse! ... Não discuta! Disse a mulher.

Imagens de velhos mortos e ensanguentados pululavam a mente de Teca, pensou no seu avô. Seu avô era um velhinho querido, brincalhão, um amor de pessoa. A imagem de seu avô se misturou com a imagem de velhos mortos. Essas imagens e o calor lhe provocaram tontura.

- e deixe tudo limpo desta vez! Senão.... Disse a mulher ao telefone com uma voz intimidadora, e olhava diretamente para Teca.

A mulher desligou o telefone e guardou-o na bolsa. Teca corou e virou imediatamente os olhos para a janela, desconcertada. Ela é que estava encarando a mulher durante toda a ligação. Enquanto virava o rosto ela percebeu de relance que a mulher tinha tatuagens. Tatuagens? Ligou a imagem ao repórter de gravata amarela e ao fundo uma praça cheia de gente falando “...líder da máfia...”. Perplexa, diversas imagens de mafiosos tatuados surgiram.

Teca percebeu que a mulher permanecia incólume e plena em sua soberba, olhou rispidamente para cima. Um rapaz alto, porte atlético, usando terno, camisa e gravata eram pretas e estava ao lado da mulher. A ficha caiu. Um frio percorreu sua espinha. Os líderes mafiosos sempre tinham tatuagens, tinham segurança particular e agora estavam matando os velhinhos.

A polícia estava atrás desta mulher concluiu Teca, que pegou seu telefone e teclou os números 190. Seu dedo ficou apreensivo em cima do botão verde. Vacilante não conseguiu apertar a tecla para ligar. Nesse momento o homem de terno põe a mão dentro do paletó.

Teca empalideceu. O homem tira o celular que vibrava silenciosamente no bolso e diz com uma voz fina:

- oi querido! já estou chegando! Apertou a campainha do ônibus.

Enquanto o homem descia, aquele barulho azucrinante voltou. O toque chato e alto do iphone ecoou no ônibus. Teca aproveitou o momento em que a mulher abria a bolsa para pegar e atender o telefone, levantou e apertou a campainha e ficou parada em frente a porta. Nestes poucos segundos em que o ônibus percorria para chegar ao ponto pareciam uma eternidade para Teca. O barulho do celular tocando continuava.

O ônibus parou. Teca desceu apressada e aliviada. Ufa! pensou. Nisso escutou aquela voz autoritária e firme atrás dela, que dizia:

- já falei filha! É para pegar os cupcake mais velhos, os de hoje são para a festa de aniversário de seu pai à noite!

Teca segurando o livro nas mãos disse inaudível atrás da máscara - “tenho que parar de ler Sherlock Holmes, ele me deixa agitada demais!”.

Juvenal Tiodoro
Enviado por Juvenal Tiodoro em 22/10/2020
Reeditado em 21/10/2022
Código do texto: T7093521
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