A arte de reencontro
Talvez o leitor com mais de 35 anos compreenderá minha crônica de hoje. Falo do leitor aficionado por livros, filmes, música, teatro. Há alguns anos tudo era mais difícil e não existia Sporty, YouTube, todas essas facilitações que vejo atualmente. Se algum de nós quisesse ouvir música, tinha que esperar tocar no rádio. Quando batia vontade de ouvir aquela canção, o jeito era ligar para o programa da estação preferida e pedir pra tocar. Não existia essa de gosto musical diferenciado e sim coletivo. Hoje gosto de Chico Buarque e Frank Sinatra, mas cresci na periferia onde tudo o que se ouvia era radicalmente diferente. A gente ouvia Só pra contrariar, Leandro e Leonardo, Raça Negra e Ivete Sangalo. Tudo isso começou a mudar quando conheci um médico de quem fiquei amigo e que frequentava a biblioteca pública da minha cidade. A gente ia ao cinema e depois ia comer em algum lugar. Ele ficava ali anotando os nomes de Billie Holiday, Maysa, Ute Lemper, Louis Armstrong em papéis de guardanapo para que eu buscasse na internet. O assunto hoje é uma volta ao passado.
Quando eu era criança conheci o disco “Buck Sarampo”, do Leo Canhoto e Robertinho de 1971. Não faço a menor ideia de quem me apresentou para aquele vinil antigo, mas sei que eu adorava o álbum. Trata-se de um pistoleiro que colocava o terror numa cidade pequena. Colocava medo nas pessoas, matava os homens, seduzia as mulheres e era uma verdadeira lenda. Incrível! Tudo era em áudio como uma novela de rádio. O trote do cavalo, os gritos, os tiros. As imagens eram por conta da minha imaginação. Aquilo era o prenúncio do leitor que eu me tornaria e do cinéfilo também.
Duas pessoas possuíam o álbum na época: uma tia de olhos bondosos que morava longe e um primo que vivia me mandando cair fora da casa dele. A tia sentava com meu pai pra tomar café, me deixava sentado na sala da casa dela, e, sempre que acabava a parte do Buck Sarampo, ela voltava para perguntar se eu queria mais biscoito e que voltasse o disco.
O primo morava perto e vivia me esculhambando. “Por que você não vai pra sua casa?” “Hoje eu não vou passar o disco não.” Eu voltava de mãos abanando, triste e com sede de que alguém me contasse uma boa história.
Hoje minha tia faleceu e o disco está completo no YouTube. Ouço quando quero, desligo quando me dá na telha, volto, pauso e depois continuo. E lembro da tia, do café, do biscoito e vejo que a garotada de hoje jamais vai passar por tal experiência de ir do inferno ao paraíso buscando pela ficção. Os tempos são outros, mas neste caso tudo mudou pra melhor.