O SILÊNCIO DE JUDITE
Na década de 1960 em Curitiba, quase todas as casas tinham acomodação para empregada doméstica, geralmente situada ao lado da cozinha e área de serviço. Minha mãe havia contratado uma nova secretaria já há uns seis meses, seu nome era Judite. Trinta e cinco anos, negra, magra, asseada, trabalhadeira e solteira, era uma crente devota e pertencia a uma congregação evangélica da qual não recordo o nome. Possuía uma fé forte e fraca ao mesmo tempo. Explico: forte, porque tudo que pensava ou fazia, submetia antes ao entendimento que ela extraíra da Bíblia; e fraca, porque tudo que pensava ou fazia, submetia antes ao entendimento que ela extraíra da Bíblia. Deu pra entender? Vou explicar melhor: Judite levava a sério os dez mandamentos, não roubar, não mentir, não cobiçar, não matar, esse era o lado forte da sua fé; e ao mesmo tempo enxergava pecados em atividades corriqueiras da vida, como ir ao cinema, tomar uma caipirinha, ou jogar baralho, porque esse era o seu entendimento da Bíblia e o lado fraco da sua fé, justamente pela leitura que fazia em sua simplória e equivocada interpretação.
Mas vamos à minha história. Meu pai era uma pessoa que valorizava pessoas corretas, honestas e dignas, dentre as quais a Judite se encaixava. E quando ele gostava de alguém, agia informalmente com tal pessoa. Vejam só o que ele aprontou pra Judite: assim que levantava pela manhã, espalhava umas cartas de baralho sobre a mesa da sala de refeições, e dizia:”_Bom dia, Judite, você poderia arrumar a mesa pra eu tomar café?”. E ficava esperando. Quando ela chegava e via as cartas espalhadas, a última coisa que passava pela sua cabeça era tocar nelas - por causa da consciência temerária - então fazia uma ginástica enorme para retirá-las da mesa com o auxílio de uma escumadeira e um garfo, e para poder estender a toalha, colocar as louças e talheres e servir os alimentos. Meu pai se encantava de vê-la com uma fidelidade tão grande aos seus princípios, e ao mesmo tempo achava engraçada a sua ingenuidade ao considerar que fosse pecado um simples toque em uma carta de baralho.
Certa noite, lá pelas três da madrugada, fui acordado por ele e notei que estava muito preocupado. _”Levante, meu filho, e desça comigo, ouvi um barulho lá em baixo”. Com uma mauser preta que ele nunca antes havia utilizado, desceu a escadaria na frente, enquanto eu – apavorado - seguia atrás. As luzes, todas apagadas. Olhamos cuidadosamente as salas e o hall de entrada. Nada havia, então seguimos rumo à cozinha. De repente, um barulho lá, com certeza tinha alguém. Meu pai gritou:_”Estou armado, quem está aí?”. Silêncio absoluto. Ele repetiu a pergunta, num volume de voz mais elevado. Nenhuma resposta. _”Judite, é você que está aí? Judite?”. Nada de resposta._”Judite, se for você, responda, porque senão vou atirar! É você, Judite..?”. E mais uma vez, nada de resposta.
Ele olhou pra mim, disse pra eu me afastar (não obedeci), engatilhou a arma, acendeu a luz do vestíbulo, e entrou para o que desse e viesse. Graças a Deus deu tempo de ele reconhecer os olhos esbugalhados da Judite, sentada numa das cadeiras da cozinha e tremendo de medo._”Judite..!!! Que barbaridade, criatura...por que você não respondeu..? Eu podia ter atirado..!!! Que coisa...
Naquele momento daria pra afirmar que Judite era branca, tal a sua palidez. Ela baixou os olhos, envergonhada, e balbuciou:_”Entrei na cozinha pra comer alguma coisa, me deu fome, Dr. Mario, me desculpe eu comer fora de horário...”._”Mas o que é isso, Judite, quando foi que te negamos comida? Você sempre teve inteira liberdade para abrir a geladeira e comer o que quisesse, como qualquer um de nós... não precisava se culpar por sentir fome de madrugada...nunca mais faça isso de não responder, Judite, você podia estar morta agora, e eu na delegacia, sabia?”
Naquela árdua noite, o piazão de treze anos filosofou como gente grande: _”Nunca vi meu pai negar um pedaço de pão pra ninguém...pelo contrário. Como é que a Judite foi pensar que ele podia ficar bravo por ela comer fora de horário? Será que ela também acha que Deus é assim, de ficar bravo por qualquer coisinha?”.
(Marco Esmanhotto)
Na década de 1960 em Curitiba, quase todas as casas tinham acomodação para empregada doméstica, geralmente situada ao lado da cozinha e área de serviço. Minha mãe havia contratado uma nova secretaria já há uns seis meses, seu nome era Judite. Trinta e cinco anos, negra, magra, asseada, trabalhadeira e solteira, era uma crente devota e pertencia a uma congregação evangélica da qual não recordo o nome. Possuía uma fé forte e fraca ao mesmo tempo. Explico: forte, porque tudo que pensava ou fazia, submetia antes ao entendimento que ela extraíra da Bíblia; e fraca, porque tudo que pensava ou fazia, submetia antes ao entendimento que ela extraíra da Bíblia. Deu pra entender? Vou explicar melhor: Judite levava a sério os dez mandamentos, não roubar, não mentir, não cobiçar, não matar, esse era o lado forte da sua fé; e ao mesmo tempo enxergava pecados em atividades corriqueiras da vida, como ir ao cinema, tomar uma caipirinha, ou jogar baralho, porque esse era o seu entendimento da Bíblia e o lado fraco da sua fé, justamente pela leitura que fazia em sua simplória e equivocada interpretação.
Mas vamos à minha história. Meu pai era uma pessoa que valorizava pessoas corretas, honestas e dignas, dentre as quais a Judite se encaixava. E quando ele gostava de alguém, agia informalmente com tal pessoa. Vejam só o que ele aprontou pra Judite: assim que levantava pela manhã, espalhava umas cartas de baralho sobre a mesa da sala de refeições, e dizia:”_Bom dia, Judite, você poderia arrumar a mesa pra eu tomar café?”. E ficava esperando. Quando ela chegava e via as cartas espalhadas, a última coisa que passava pela sua cabeça era tocar nelas - por causa da consciência temerária - então fazia uma ginástica enorme para retirá-las da mesa com o auxílio de uma escumadeira e um garfo, e para poder estender a toalha, colocar as louças e talheres e servir os alimentos. Meu pai se encantava de vê-la com uma fidelidade tão grande aos seus princípios, e ao mesmo tempo achava engraçada a sua ingenuidade ao considerar que fosse pecado um simples toque em uma carta de baralho.
Certa noite, lá pelas três da madrugada, fui acordado por ele e notei que estava muito preocupado. _”Levante, meu filho, e desça comigo, ouvi um barulho lá em baixo”. Com uma mauser preta que ele nunca antes havia utilizado, desceu a escadaria na frente, enquanto eu – apavorado - seguia atrás. As luzes, todas apagadas. Olhamos cuidadosamente as salas e o hall de entrada. Nada havia, então seguimos rumo à cozinha. De repente, um barulho lá, com certeza tinha alguém. Meu pai gritou:_”Estou armado, quem está aí?”. Silêncio absoluto. Ele repetiu a pergunta, num volume de voz mais elevado. Nenhuma resposta. _”Judite, é você que está aí? Judite?”. Nada de resposta._”Judite, se for você, responda, porque senão vou atirar! É você, Judite..?”. E mais uma vez, nada de resposta.
Ele olhou pra mim, disse pra eu me afastar (não obedeci), engatilhou a arma, acendeu a luz do vestíbulo, e entrou para o que desse e viesse. Graças a Deus deu tempo de ele reconhecer os olhos esbugalhados da Judite, sentada numa das cadeiras da cozinha e tremendo de medo._”Judite..!!! Que barbaridade, criatura...por que você não respondeu..? Eu podia ter atirado..!!! Que coisa...
Naquele momento daria pra afirmar que Judite era branca, tal a sua palidez. Ela baixou os olhos, envergonhada, e balbuciou:_”Entrei na cozinha pra comer alguma coisa, me deu fome, Dr. Mario, me desculpe eu comer fora de horário...”._”Mas o que é isso, Judite, quando foi que te negamos comida? Você sempre teve inteira liberdade para abrir a geladeira e comer o que quisesse, como qualquer um de nós... não precisava se culpar por sentir fome de madrugada...nunca mais faça isso de não responder, Judite, você podia estar morta agora, e eu na delegacia, sabia?”
Naquela árdua noite, o piazão de treze anos filosofou como gente grande: _”Nunca vi meu pai negar um pedaço de pão pra ninguém...pelo contrário. Como é que a Judite foi pensar que ele podia ficar bravo por ela comer fora de horário? Será que ela também acha que Deus é assim, de ficar bravo por qualquer coisinha?”.
(Marco Esmanhotto)