Volta

Pensativo, Matheus subiu as escadas. Escalou lentamente os seis andares que o separavam de seu apartamento. Desta vez sequer reclamou do elevador eternamente quebrado. Simplesmente subiu. Encontrou a porta da sala entreaberta. Podia ouvir ao longe o som de um rádio ligado se misturando com as buzinas dos ônibus e carros na avenida. As luzes do apartamento estavam apagadas, exceto pelo abajur da sala com sua característica luz vermelha que tornava o ambiente meio fantasmagórico. Seguiu o corredor e passou pela porta, fechando-a.

Bianca estava sentada a beira da janela, fumando um cigarro e bebendo diretamente da boca de uma garrafa de vinho seco. Seco demais para o seu gosto, mas ela sempre insistia para que ele comprasse. Inicialmente ela não disse uma palavra. Talvez por não tê-lo notado. Ele se encostou na parede e a observou por alguns minutos. Enfeitiçado por sua imagem.

Não havia muito conforto na vida dos dois. Em geral faltava mais do que sobrava... Mas tudo que faltava era simplesmente material. Três meses naquela aventura e ainda não tinha tido a menor sombra de arrependimento. Quanto a Bianca, Matheus achava que ela aceitaria até roubar um banco com ele sem pestanejar. Estavam juntos, o resto parecia não importar.

Ainda perdido nos pensamentos, Matheus se tocou que também era observado. Bianca o olhava fixamente com seus densos olhos pretos. O mesmo olhar em que ele tinha certeza que podia se afogar quando estavam muito próximos. Recém saído de sua contemplação, Matheus andou até o meio da sala ao encontro de Bianca, que o beijou subindo na ponta dos pés.

Ela parecia ter saído de algum filme de ficção, escuro e fumarento. Bianca sorriu como se vê-lo tivesse sido o ponto alto do seu dia, mas não disse nada e logo voltou para sua posição na beira da janela.

Foi então que ele percebeu que ela desenhava a visão que tinha da rua. Os carros, os passantes, os ônibus lotados. De algum modo Bianca conseguia encher a imagem de poesia e vida. Onde Matheus só conseguia ver confusão e fumaça.

Os traços dela conseguiam tornar aquela avenida lotada num lugar quase aconchegante. Quase do mesmo jeito que ela tinha feito com sua vida. Talvez se sentisse assim por estar apaixonado. Mesmo que fosse diferente de tudo o que já tinha vivido com outras pessoas.

Mas a presença dela também lhe trazia também outros receios e pensamentos sobre morte, tempo e eternidade, que não costumava ter. Tinha medo de perder-se, ou de perder-se dela. E muitas vezes se questionava por quanto tempo poderiam viver isolados do mundo que corria loucamente do lado de fora.

Como se tivesse percebido que ele ia afundando novamente em seus pensamentos, Bianca largou seus desenhos e o tomou pelas mãos.

- Volta. – Ela disse, quase como num suspiro.

Matheus sorriu sem graça e quando ela o olhou diretamente nos olhos. Preso ao olhar dela, Matheus sentiu todas as suas angústias e conceitos se desmancharem como se não fizessem sentido algum. Mordendo os lábios, Bianca se esticou e apagou a luz do abajur.

Ficaram abraçados em silêncio no escuro, desperdiçando juntos, todo tempo que ainda tinham por perder.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 20/10/2020
Código do texto: T7092053
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