O rio que subiu para o alto da colina

O compadre Lurdinha e eu fazíamos o mapeamento geológico do baixo Ribeira de Iguape, proximidades de Registro, o sul florestal do Estado de São Paulo. Uma região rebaixada colinosa, cercada por montanhas da Serra de Paranapiacaba. Fruto do trabalho erosivo do grande rio ao longo do tempo geológico. Tempo que é impensável para o homem comum. Este causo que o diga.

Estávamos justamente mapeando os remanescentes de depósitos fluviais, principalmente cascalhos, encontradiços em diversos níveis da paisagem regional. Os níveis testemunham fases de evolução do rio, há muito tempo, milhões de anos. Naquelas épocas o rio ainda não tinha escavado seu leito de hoje, corria num fundo de vale à altura do alto das colinas atuais, onde são encontrados os cascalhos que evidenciam que um dia o rio andou por ali.

Certa manhã estávamos analisando um barranco cavoucado bem no alto de uma dessas colinas, situada algumas poucas dezenas de metros acima do leito atual do rio e a uns dois quilômetros de distância do belo caudal, que tem suas nascentes nos distantes planaltos paranaenses e paulistas. No barranco apareciam os típicos cascalhos fluviais: os seixos arredondados, alongados e imbricados, indicando o sentido da corrente d’água que os depositara.

Concentrados nas observações e anotações, nem percebemos a aproximação do morador local, um roceiro já entrado pela velhice, pele acobreada, magro, baixo, barbas brancas por fazer, roupas, botina e chapéu muito surrados, palheiro de fumo picado no canto da boca. Vinha com semblante que denotava contrariedade e descrença, o mesmo de muitos moradores quando nos viam naquelas inexplicáveis bisbilhotices. Obviamente dois estranhos vindos da cidade, remexendo os barrancos perto de sua propriedade. Cumprimentou-nos:

-- Diiiaaa...

Subitamente arrancados de nosso aparente deslumbramento com aqueles ordinários cascalhos, respondemos de modo que o homem deve ter ficado ainda mais desconfiado:

-- Bom diiaaa...

Tentamos dar prosseguimento ao que fazíamos. Ficamos um tanto constrangidos com ele, acocorado enquanto tragava o palheiro, fixamente a observar nosso indiscutível interesse naqueles cascalhos, que para ele serviam para remediar os barreiros dos caminhos mais usados. Depois de alguma mudez, resolvi puxar conversa, o que fiz com muita presunção:

-- O senhor sabe de onde vêm estes cascalhos?

Ele ainda pensou por uns instantes, olhou para os lados como se a confirmar que tudo estava como ele sempre vira até a véspera:

-- Ói moço, tô aqui tem mais de cinquenta anos com minha família, e meu pai e avô mais que isso antes de mim. Essas pedra sempre tiveram aí. Não vieram de lugar nenhum, não.

-- Mas são pedras de rio. Um dia o rio passou por aqui onde estamos.

O semblante do roceiro encheu-se de confiança, sabedoria, certeza, galhofa e malícia. Ele riu para dentro, em respeito, creio, ao fato de sermos desconhecidos e de estarmos fazendo anotações escritas em cadernetas, tirando fotos e colhendo amostras. Tudo aquilo deve ter-lhe parecido que se tratava de um trabalho sério, e não de um desatino qualquer. Após refletir por algum tempo, respondeu:

-- Um dia um rio passou por aqui! -- Cuspiu de lado. -- Lhe digo, moço, nunca ninguém viu isso. E se tivesse visto, nem diria, avexado. Decerto iam dizer que tava maluco. Aí vem ôceis da cidade, escrevem isso, ôtros vão lê, nunca vieram aqui. Vão pensá que é verdade. Num é mais fácil dizê que tão percurando oro? Ói, já passaram por aqui os hómi da companhia, carregaram amostra, analisaram. Mas não acharam nada não, viu?