Nossas histórias, nossas gentes.( chegou a luz elétrica...)

Minha terra, Moçâmedes ao Sul de Angola/África, de tão boas lembranças sempre a fazer-nos voltar atrás no tempo, como que uma grande família desde as épocas mais remotas, era uma cidade muito bem cuidada onde cheiros de mar e características de rotina pesqueira se harmonizavam a uma vida tradicional de gente educadíssima e de esmerado comportamento social.

Volto até aos anos 30/40, tempos de belíssimas casas de madeira pela cidade, mas ainda sem luz elétrica.Existia uma termoelétrica e geradores a fornecer energia necessária a determinados locais, como por exemplo hospital e cinema. Apesar de tempos tão bonitos à luz de velas, lamparinas , lampiões e petromax( um tipo de lâmpada de parafina)e de candeeiros sofisticadíssimos apesar da ajuda da tocha a belas peças em ferro forjado que iluminar esquinas da cidade, e a dar-lhe aquelas peculiares características românticas, havia a vontade e necessidade de mudança. A cidade crescia, potencializava-se sua industria pesqueira e o desejo das pessoas por maior conforto. Tudo se agravou muito com o incêndio na termoelétrica no final dos anos 40 e que a destruiu por completo. Corria-se contra o tempo e todos começaram a preparar-se para a grande mudança.

Esperava-se por luz nas belas residências de Moçâmedes. Entre outros bairros bonitos havia um muito tradicional cheio de casuarinas encantadoras e onde se via uma fileira de casinhas de madeira coloridas que eram um encanto; casinhas pequenas, em madeira, e com uma graciosa varandinha no piso superior .Um mundo que ainda faz parte das lembranças do meu maravilhoso reino infantil; ali, perto do Caminho de Ferro e do matadouro. Também nas nossas lembranças outras casas em madeiras como por exemplo a do Sr Newton por cima do Venâncio. Foi nesta casa que, por ser alta( talvez a mais alta da cidade, na época), se refugiaram várias famílias quando aconteceu a grande enchente do Rio Bero no inicio dos anos 40.

Também neste bairro vivia o veterinário da cidade , meu padrinho Dr Elias Trigo igualmente numa aconchegante casa de madeira precisamente em frente ao antigo campo de futebol. Casa grande , com um pé direito enorme, e que pertencia ao Sr Saiago também de uma família muito tradicional. Apesar de não ser própria organizaram-se para o trabalho da instalação da fiação elétrica necessária. Foi um alvoroço: familia feliz, empregados entusiasmadíssimos , ferramentas preparadas e material comprado.

Chamaram o Sebastião, o primeiro cozinheiro da família , e pediram-lhe um jantar especial para a comemoração do grande evento . Compromisso assumido, promessa de um grande jantar com um belo macarrão como as meninas pediam, mas infelizmente a coincidir com uma das muitas noites que Sebastião estava bêbado. Era um homem fantástico, amigo e muito fiel à família mas com esse problema.Por tais qualidades, e não só a de bom profissional, lá continuava a servir para a familia do meu padrinho. Mas Sebastião tinha uma característica singular; andava sempre com uma enorme faca na mão e fazia questão de tê-la levantada quase o tempo todo. Mas, faça-se justiça. Era muito cuidadoso e sempre atencioso a avisar a todos que não tivessem medo do seu facão.

-“ Minha senhora, não tenha medo!”- dizia ele para minha madrinha quando o acompanhava à despensa para pegar os alimentos do dia.

-“ Não, não tenho medo .Fica à vontade com a tua faca, Sebastião.”-respondia ela.

Chegou a grande noite e lá foi ele para a cozinha tentando fazer o melhor jantar do mundo, apesar de tudo ainda em meio a obras , ferramentas e muito restos de cabos e fiação elétrica.Apareciam fios branquinho por todos os cantos da casa. Garrafinha de vinho escondida num cantinho do armário e ele em volta das panelas com o facão em uma das mãos.Era o cenário da noite.

Chegam alguns convidados, amigos íntimos da família, e sentam-se todos à mesa. Surge o Sebastião com uma grande travessa. Áh pois !Naquela noite ele fazia questão de servir, afinal era a 1ª noite sem petromax na casa dos seus patrões.

Jantar servido . De repente todos param de comer pois sentiam algo estranho na boca, muito duro , esquisitíssimo.Olham fixamente para os pratos e ...

-“ Sebastião, o que são estes fios brancos, fininhos, no meio do macarrão? Como vieram aqui parar?”

Sebastião , meio que cambaleando levanta seu facão, fica pensativo e muito sério responde:

-“ Tempos modernos senhora, e erraram ao comprar tanta fiação. Acho que guardaram as sobras dentro da minha panela do macarrão”.

E assim foi! Uma noite memorável na família do meu padrinho e na cidade de Moçâmedes.

Lana

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Lady Lana
Enviado por Lady Lana em 20/10/2020
Reeditado em 20/10/2020
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