ROMEU E JULIETA - 19/10/2020
O DIABO PERDEU OS CHIFRES DEPOIS DE UMA CARTA DE AMOR
Lia de Sá Leitão
O homem; cabelos despenteados, uma barba que passava e muito o ombro, se medisse ao grosso modo chegava ao umbigo, e se penteasse cobria os pés. Unhas pretas de sujeira, pele enrugada de sol a sol, chuva a chuva e nunca um banho espontâneo de sabão de pedra amarelo e chuveiro. Era um expositor de cheiros horríveis tanto que por onde passava até os cães corriam com os rabos entre as pernas. Era uma imagem de botar medo, e para variar sempre tinha algum sobrando para se manter bêbado!
Era o bicho papão dos meninos mal educados, atuais TDH, das escolas chiques ao derredor da Avenida Malaquias, bairro chique do Recife. Nessa época com os seus sobrados e quintas, hoje um paliteiro de prédios luxuosos. Ao derredor dos mesmo Colégios dos ourudos.
Os moradores quando se irritavam com aquela imagem do Neandertal chamavam os Bombeiros. Era a festa da meninada sem alma! O corre corre, gritaria! O pega daqui e o espanta dali! Finalmente o homem era rendido e seguro numa malha impossível de se desvencilhar.
Davam-lhe um banho de mangueira. Vestiam-no com roupas novas para mais uma nova temporada de negações humanas. Deixavam a sua identidade intacta sem raspar a barba e cortar os cabelos.
E saber que aquele homem se perdia entre Espinheiro e Aflitos, mas os seus olhos se achavam em Julieta, a mulher! Mais uma figura bizarra! Banguelas, cabelos de pavio de fifó, olhos negros e miúdos, lábios murchos falava alto, mole e fino, mas era destra numa quicé, espécie de punhal herdado da mãe da avó. Dizia que era a herança dos tempos de Antônio Conselheiro. Ficava guardada bem amarrada com elástico no cos da bermuda de meses sem trocar.
Conhecia todos os palavrões possíveis para adjetivar quem olhasse duas vezes para sua bermuda vermelha já desbotada pelo tempo de uso e pelo desleixo. Quanto a necessidade extrema isso era besteira, comia melhor que eu e vc, bebia melhor que muitos diabéticos sucos doces da fruta, e ganhava tal qual comida roupas das granfinas. Outro dia ganhou cem reais, um celular chique, mas Julieta nem sabia ao certo o seu nome próprio, não conhecia as letras e nem os números, mas ninguém ganhava dela quando o assunto era dinheiro. Nas eternas idas e vindas, caminhadas exaustivas descia a rua pelo lado direito e retornava pela calçada da esquerda. Era trágico! Mas ela era feliz!
Vivia simulando falas e atendimentos pelo celular, marcava hora na manicure e cabelereiro, tirava de dentro da bolsa um baton escarlate e um pó de arroz e a esponja rota, fazia uma nuvem no rosto, cuspia pó. Espirrava pó. Não cheirava pó mas fumava queimava uma pedrinha como quem fuma cigarro inglês, na maior classe. Puxava uma bolsa da Barbie cor de rosa com todas as preciosidades da sua vaidade vanitas.
Era uma mulher de rua, no bem popular dialeto pernambucano, uma aritiqueira, encrenqueira. Era alcoólatra, e nunca faltava a taca de maconha para pitar antes de dormir debaixo de algum pingo de ar condicionado. Era justa; não furtava de pobre só das madames.
Um dia de domingo parou um carro e uma mulher deu um saco de roupas para os dois. Ali, esqueceram a resistência ao banho se fizeram identidade entre eles e o chafariz.
Tiraram as roupas no passeio público e se banharam cantando a música da vez.
A cena era dantesca, mas refutada pelo inusitado, um homem e uma mulher que pulavam como crianças, se riam, jogavam a água para cima, dos lados, um no outro, se abraçavam, nus de vida e de olhares que se confundiam entre realidade e doidices. Nada ali era feio, apenas desproporcional ao mundo das cores e dos padrões familiares estampados no outdoor dos ônibus que circulavam pela rua e contornavam o chafariz.
As pessoas riam. Ficavam em pé nos coletivos quando esses paravam na parada bem em frente à praça. As varandas dos casarões seculares pesados de moral e cristianismo se iluminavam e as pessoas se empilhavam para assistir a felicidade dos incômodos sociais.
O que dizer de tamanha risadagem, pulos e gritos! Algumas pessoas mais velhas e cheias de compromissos se repugnavam! Só no Brasil!
Gentes da circunvizinhança nunca viveram tamanha libertinagem, a não ser na calada da noite depois do sono dos filhos, debaixo das cobertas arriscavam um filme de sacanagem. Gentes que nunca quebrou regras de convivência!
Gentes que nunca passavam muito tempo nas suas ricas varandas descobriram seus vizinhos em outras tantas varandas.
Era aterrador as varanda que se amostravam e a penumbra do chafariz, no luso fusco das 17h.
Aquele chafariz, arquitetura secular e vitrine nunca apreciada pelos olhos da riqueza nos seus belíssimos contornos até o espirro dágua. A praça, certamente nunca experimentou o desprazer de suar dentro do coletivo que freava rangendo os ferros para um passageiro. Outros apontavam resmungavam a miséria da loucura e atribuía à liberdade da política social do PT!
Outras pessoas socadas em seus chambres olhavam incrédulas as astúcias e a arrogância da miséria dando uma banana para as regras e mergulhando na liberdade mais explícita, a obscenidade de possuir e saber mostrar que o prazer é para todos! Ele segurava as partes e mostrava para as varandas, ela segurava os peitos e dava as costas mostrando e requebrando a bunda, e se riam às gargalhadas.
Sem lua, o chafariz também ria e chorava de uma aflita alegoria. Era a treva da madrugada em plena tarde de segunda feira. Alguém liga para a polícia, ao longe se escuta o ruído histérico das sirenes nas viaturas policiais. Desde longe avisava prender a miséria humana!
Os Policiais descem da viatura, olham, reclamam! Apontam cassetetes! Ordenam que os dois saíssem! O par permaneceu jogando água um no outro, jogando água nas estrelas, enfim jogando água nos policiais e sorrindo aquele sorriso sem saberes das ordens sociais, ausentes dos pudores em suas nudezas.
A polícia recua diante da enxurrada, o policial engrossa a voz! Outra viatura chegou e ninguém se atrevia entrar no chafariz da praça.
Era o devaneio do amor de Romeu e Julieta, ali abraçados, molhados, pelados incomodados por um holofote da polícia, romanticamente observado pelo vigia do prédio: esse lume ajuda a pratear o beijo e o afago.
Os dois dão-se as mãos, pulam o parapeito procuram as roupas e se vestem.
A policial se aproxima e ela questiona a autoridade num tom suave; a senhora dona da “poliça” já amou um homem? E se sentiu feliz? A representante da ordem e da Lei nada responde. Ele avança para o policial que o aborda e diz; o “puliça” já amou uma mulher linda? O policial riu e disse não!
O casal vestido se abraçou mais uma vez e se beijaram ardentemente como qualquer cio.
Uma voz feminina no radio anunciou um assalto em andamento num banco vinte e quatro horas próximo ao chafariz.
O policial alegando uma ocorrência grave à moral e bons costumes continuou a abordagem. Deu voz de prisão, ligaram a sirene e saíram em disparada para a delegacia do bairro. Deixaram escrito no Boletim de Ocorrência briga de casal e um amante que se evadiu do local com a chegada da polícia.
Os chifres do cão derreteram quando abriram o porta malas da viatura ainda faziam Romeu e Julieta faziam amor entre urros, suspiros e cavalgadas como dois normais .