CRÔNICA DUM CORAÇÃO EMPERRADO
Eu sempre estava e continuo ali...como um soldado de guerra, focado a escutar e auscultar o todo.
Não é fácil ouvir com clareza as queixas humanas, as claramente manifestas no corpo e as veladas no íntimo de cada ser, as que se misturam entre anseios e medos fugidios que correm paralelos pelas estações do tempo, permeando nossas dúvidas, receios, saberes e também não saberes.
Nem toda a ciência se curvaria um dia a tantos "donos".
Enfim, são muitas as "interrogações vitais" que como os sinais de mesmo nome, vitalizam as trocas que exercitamos no ofício. Qual um detetive focado em capturar um bandido oculto.
Certo dia, bem no início da luta, depois de auscultar um coração, informei à família sobre a possibilidade duma lesão valvar grave.
Então, ouvi algo do qual nunca me esqueci: "mas isso não pode ser, porque o "médico dele" lá do lugar tal, que também é médico do GRANDE ARTISTA tal, nos falou que estava tudo bem, e que todos os exames estavam ótimos!"
Aquilo me valeria para a reflexão da arte e para a vida profissional que seguiria em revolução tecnológica, inclusive!
Sim, há recados subliminares dos tempos que exame algum prevê com antecedência.
Nesse nosso mundo, sob um olhar mais mundano, hoje a mensagem é que já não basta ser um profissional...no silêncio da dedicação ao ofício.
Hoje há o marketing que diagnostica até o que não se vê, o que não existe, o que não precisa de remédio algum.
Mas, no "correntismo" da medicina graduada e pós graduada nas telas é preciso o curso de marketing, é preciso saber lidar com o imaginário do ego humano, pedir exames e mais exames indicados pelos "Apps" de diagnósticos por algorítmo, carregar imagens lindas, sofisticados e caríssimas que nunca delineiam a alma das doenças, é preciso a receita dum remédio das últimas pesquisas dos laboratórios multinacionais e o badalado endereço que assiste o artista das multi plataformas das redes enredadas nas iscas dos tempos.
Naquele dia já tão distante, lembro que fiz como sempre faço até hoje, sugerindo que a família retornasse para a avaliação "do seu" médico ou de mais profissionais para que se certificasse do que eu havia auscultado: um sopro trepidante, sob uivos da corrente sanguínea que insistia em vencer o obstáculo duma válvula cardíaca fechada ao "continum" da vida dum coração já sacrificado.
Continuo auscultando. Sempre. Ausculto até os ossos!
Continuo ouvindo e exercitando o tudo que aprendi daqueles professores que tinham o Ser Humano e a relação médico- paciente como pilar da arte humanística de abraçar as gentes e as suas dores visíveis e/ou silenciadas aos gritos do que treinamos ouvir.
Aprendi com meus professores a tirar sangue das pedras...na anamnese dos tantos silêncios que contam.
Foi com eles que aprendi que um coração bate igualmente em todos os cantos do mundo.
Foi com eles que aprendi que ser médico transcende todas as receitas atualmente impostas por uma atualidade que descarta o Ser Humano nas caixinhas dos interesses que lucram com o desprezo da VIDA.
Que o exercício da arte médica, tanto quanto o pulsar das bulhas, é o mesmo, seja no casebre, seja no palácio.
E que o artista não é quem tem tela e pincel mas quem sabe fazer a mistura sensorial das cores...
Aquele paciente do "médico dele" anos depois me voltou.
"ele pediu para voltar aqui", me relatou a família entredentes.
Sim, eles sempre voltam porque hoje, mais do que sempre foi, é preciso continuar a auscultar o todo.
As telas não bastam.
Então, assim o fiz novamente. Demorei um pouquinho para apreciar o que ouvia.
Auscultei, então, um coração tinindo de agradecimento, de válvula já trocada por mãos artistas, novinha em folha, desemperrada daquele estrangulamento que eu ouvira tempos atrás.
Havia sido operado um mês após a minha primeira ausculta.
"tenho mais algum problema?" ele me perguntou ansioso.
Respondi com os versos certeiros de Fernando Pessoa:
"Agora sim está tudo bem, apenas ouço aquele saudável e bem direcionado
"comboio de cordas que se chama coração"- conhece?"
Ele me sorriu a reconhecer o fato...e a lição da bela poesia do grande poeta fingidor.
A que nos ensina sobre o igual sopro de vida que permeia todos os corações amalgamados num mesmo barro.