Caprichos

Hoje eu queria o som qualquer que me viesse. Queria o barulho tardio ou adiantado das coisas da vida como elas mesmas são, do jeito próprio delas, sem um filtro, sem censura ou escolha alguma.

Logo cedo, por desejo meu, desliguei o que pudesse barulhar: o notebook, o celular, a TV, o rádio, essas coisas, bugigangas! Busquei eliminar as possibilidades de controle, as chances de que eu alterasse ou cobrisse qualquer sonzinho ou ruído natural. Queria tudo como o “Deixe estar”, captando a natureza em seu natural, como se fosse possível até ouvir os passinhos das formigas.

Conforme as horas entravam à manhã, observei o céu desenuvecer do cinza ao azul doce, enquanto contemplava em palato mais uma de minhas religiosas canecas de café quente. Eu me inquietava aguardando os sons do mundo, porque ainda reinava um silêncio de manhã, contornado apenas pelo barulho que faziam as pessoas que saíam para trabalhar: passos e vozes na rua, motor de carro, engrenagem de bicicleta.

Julho, inverno, lembrei. E, por isso, os pássaros aguardam mais um pouco para baterem seus pontos em cantos pela vida do dia. Os ventos dançavam com as árvores, soando folhas, quando os pássaros chegaram; bem poucos e ainda muito tímidos. Firulavam afinando gogó. Eu jurava que o dia “estava começando” ali, naquelas quase e atrasadas 9 horas do relógio. Tolo...

O céu se abria aos poucos, devagar como se as nuvens que penumbravam o dia fossem puxadas por caracóis dormitosos do inverno, querendo iniciar os trabalhos mais tarde, como os passarinhos, maritacas e maracanãs. Um galo cantou no quintal de alguém daqui, outro galo respondeu de outra casa e outras assim foram. A cachorrada começou a latir com os moleques correndo pela rua jogando taco e xingando uns aos outros.

Era aquele meu “Deixe estar”. Descobri por conta desse dia que no inverno os pássaros iniciam sua rotina quase três horas mais tarde, por isso parece que o dia fica descompassado.

Ao fim do dia, após só ter os barulhos externos à minha vontade, escrevi em minha agenda:

“Deixe estar

Tal os meninos estão na rua

E os passarinhos demoram na cama,

Como se a rua caprichasse nas horas

Ao capricho do nosso silêncio.”

Crônicas de um Ignorante
Enviado por Crônicas de um Ignorante em 15/10/2020
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