O impacto de uma professora
O ano era 2016, o mês era abril, o dia era vinte. Tratava-se de um dia muito especial, eu estava indo realizar o exame de carro para ter minha primeira habilitação. Tudo aconteceu logo pela manhã, fui ao lugar onde fora marcado, realizei o trajeto com o avaliador, mas acabei sendo reprovado. Cabisbaixo e decepcionado, me dirigi até a Catedral, mais especificamente à Capela do Santíssimo, onde minha mãe me esperava. Contei para ela o ocorrido e vi uma leve tristeza em seus olhos, mas as notícias ruins não acabavam por aí.
Havia uma amiga, nessa mesma capela, uma ex-colega de trabalho que atua como Agente de Organização Escolar na instituição de ensino onde eu estudei até o ano anterior e fui estagiário na sala de informática. Bom, ela tentou me consolar pelo ocorrido, mas disse que tinha uma notícia um pouco mais séria: a minha ex-professora de história, a Beth, havia falecido naquela madrugada por conta de um câncer.
Eu não conseguia acreditar no que ouvia, naquele momento o dia escureceu e o chão saiu debaixo dos meus pés. No começo do mês de fevereiro daquele mesmo ano eu havia ido à escola visitar e rever meus ex-professores, entre eles também a vi. Ela, como sempre, estava radiante, animada, entusiasmada com o novo ano letivo que se iniciava e, especialmente, comemorava o fato de eu ter sido aprovado no vestibular da mesma faculdade e no mesmo curso no qual ela era formada. Para mim, era impossível aceitar que este mesmo ser humano, que aparentava estar tão bem, já não mais vivia em nosso meio. Era algo realmente surreal.
A Beth foi uma professora muito importante em minha formação, lecionou para mim na disciplina de história durante seis anos. Ela ensinou muito mais do que conteúdos curriculares obrigatórios para passar no vestibular, me mostrou como ser uma pessoa melhor através de práticas e vivências muito simples que devem ser aplicadas no cotidiano e que podem ser aprendidas com os estudo da história.
O trabalho para ela era uma verdadeira vocação, um ato de amor e de entregar. Não foram poucas as vezes em que a vi investir seu próprio dinheiro para conseguir elevar o nível de qualidade de suas aulas. Ela se doava de toda e qualquer forma, pois acreditava que através do seu trabalho o futuro de muitos alunos poderia ser mudado.
São muitas as boas recordações que levo das aulas e dos momentos em que tive a honra de conviver com esta pessoa incrível. A calma e a serenidade com as quais ela resolvia todos os problemas e conflitos dentro e fora da sala de aula eram realmente fora do comum. Relembrando tudo isso hoje vejo que ela foi uma das pessoas que, com seu modo de viver e enxergar o mundo, me fazia sentir a presença do próprio Cristo ao meu lado.
De qualquer modo, o dia passou – lenta e amargamente, mas passou – à noite meu pai me levou ao velório dela antes de seguirmos para mais um dia de aula na faculdade. Ao chegar lá, ficou bem claro para mim que ela era amada e querida por muitos. No local havia um fluxo de pessoas muito grande, eu nunca tinha visto tanta gente em um velório, isso sem levar em conta as mais de trinta coroas de flores que foram usadas para homenageá-la e alguns vasinhos e arranjos também floridos.
Ao entrar na sala na qual o caixão com o seu corpo fora colocado notei que al seu lado havia uma mulher que, pelas feições, provavelmente era irmã da Beth. Logo que me aproximei para vê-la pela última vez e rezar essa mulher perguntou quem eu era então lhe expliquei que fui aluno dela estava iniciando uma graduação em história e ela confirmou ser realmente irmã da falecida. Ela se mostrou contente em saber que também para mim a Beth fora uma ótima influência, inclusive na escolha da minha profissão. Fiquei mais um tempo contemplando o corpo já sem vida e depois sentei-me próximo ao caixão.
Essa mulher continuou seu “trabalho”. A todos que chegavam fazia o mesmo questionamento. A grande maioria respondia que havia sido aluno da Beth à dois, à cinco ou à dez anos antes variando de caso para caso. Entre tantas pessoas que iam e vinham uma mulher que aparentava estar na casa dos trinta e poucos anos, muito bem vestida – com um uniforme de empresa que parecia ser o de uma gerente – se aproximou do caixão, também foi interrogada e ela deu-lhe uma resposta que jamais me esquecerei:
– Há vinte e cinco anos atrás eu fui aluna da Beth e ela mudou minha vida. Se hoje tenho alguma coisa ou sou alguém, devo tudo isso a ela.
Sinceramente, eu não sei quem era essa mulher e se a vesse novamente provavelmente não a reconheceria, também não faço a mínima ideia do que a Beth tenha feito de tão importante a ponto de definir totalmente a vida dela. Naquele momento, eu entendi de fato o que é ser realmente um professor/professora de verdade. Na realidade, eu pude realmente entender o que é ser uma pessoa de valor.
Saber que mesmo passados vinte e cinco anos aquela mulher não havia se esquecido da importância de uma docente em sua vida, foi algo que me marcou muito. Não faço a mínima ideia de como terminar esse texto, são muitas coisas em mente nesse momento, neste dia dos professores, o primeiro que comemoro sendo oficialmente pertencente a essa classe de profissionais. Hoje sou professor formado, com uma pequena experiência de apenas oitenta e cinco aulas ministradas até que a pandemia do covid-19 viesse me impedir temporariamente de continuar atuando como professor. Está tudo muito incerto, o futuro das profissões na área da educação não é nenhum pouco promissor. Às vezes, o medo de não conseguir me manter como docente devido às péssimas condições de trabalho e de baixa remuneração me assola profundamente.
Em meio a esse momento caótico procuro não me deixar abater. Apesar de minhas limitações e de ter muito a aprender ainda, eu sinto uma necessidade pulsando em minhas veias de “continuar” o trabalho dela, mesmo que eu não saiba exatamente como proceder. Não sei se estou sendo um pouco utópico ou quem sabe até infantil demais – ou não esteja, isso depende muito do ponto de vista –, mas ainda quero acreditar que em meio a toda essa problemática é possível uma mudança positiva. Sei que para chegar a ministrar aulas com qualidade semelhante à dela precisarei de muito tempo de prática e experiência. De qualquer modo, enquanto houver forças em mim e possibilidades buscarei levar aos outros alunos ao menos um pouquinho daquilo que vi e vivi com a Beth na esperança de poder transformar se não o mundo todo ao menos o mundo de alguns alunos.