Carta dentro dos limites
Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.
(Fernando Pessoa)
Me colocaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo Paulo,
a oeste pela minha educação [...]
Me desespero porque não posso estar presente
a todos os atos da vida [...]
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados [...]
(Murilo Mendes – Mapa)
Não é possível viver todas as vidas. Não há como expor todas as ideias num só texto. Não dá para fazer tudo o que se quer. O mundo é grande demais para conhece-lo por inteiro. Não dá de agradar a gregos e troianos sem um que de faz de conta. Não dá de servir a dois senhores. Há limites na vida. Cedo ou tarde é preciso dar-se conta disso. E se há uma descoberta necessária, é tomar consciência dos limites – quanto antes, melhor. Não sei o que Aristóteles diria sobre o limite: acidental ou essencial. Eu o vejo como parte constitutiva, como estrutural à forma, como natural à matéria da vida, como indispensável para o aprendizado, até mesmo para a felicidade.
A linha do limite não pode ser beirando a covardia, tampouco alcançando o horizonte da loucura inconsequente. Não pode ser preguiçosa a ponto de justificar-se incapaz desde logo, mas também precisa reconhecer o alcance das próprias forças. E onde está a tangência desse encontro? Como sabe-lo em sua justa medida? Em alguns casos é preciso humildade, em outros, prudência, em outros ainda inteligência – emocional, espiritual, psicológica, profissional.
Se pensarmos os limites como uma imposição da própria natureza para que o equilíbrio das coisas, da vida, do interior humano possa acontecer, uma espécie de autodefesa a nos avisar o que está por vir caso não respeitarmos as fronteiras, veremos mais os seus benefícios, estaremos mais atentos a eles. Um problema é que a engrenagem que move o mundo e muitos corações é o apego, a ilusória segurança das posses, a entorpecente ganância, um egoísmo destruidor. Todo mundo entoa loas a São Francisco, mas quantos fazem o que ele fez, vivem a partir dos mesmos princípios? Pouco interesse há em viver ao seu modo. Contentamo-nos com umas poucas esmolas para desencargo de consciência, desde que elas não nos lesem o bolso. E nesse universo problemático dos acúmulos, limite é o que não há: ou ele se camufla em pseudas necessidades, ou é sufocado e sua presença fica esquecida, ou é simplesmente ignorado, até que as consequências apareçam.
Limite não é sinônimo de derrota, de perda, de tragédia. Limite é segurança e proteção. Na educação, limite para a corda solta, limite para a severidade. Na amizade, limite para as ausências, limite para as intimidades. No trabalho, limite para as sobrecargas, limite para os erros. Na fé, limite para os escrúpulos, limite para os laxismos. Na ciência, limites éticos, morais e religiosos. Nas competições, os limites dados pelas regras e aqueles que garantem o jogo limpo. Nas convivências, os limites da paciência, os limites da ajuda oferecida. Na política... (parece que limite é palavra fora de discurso e de ação, parece que o limite é o próprio interesse).
Do que sei, reconheço uma coisa que não tem limites: o amor de Deus. Mas acontece assim: quanto menos os limites a que estamos fadados são por nós reconhecidos, mais nós mesmos colocamos limites na ação do bem querer de Deus em nossa vida, por que sem limites, tornamo-nos nossos próprios deuses. Viver sem limites é alargar em torno a nós um campo de neutralização da presença divina, um espaço que deixa distante e – é possível – quase ausente o amor que sustenta e dá razão para tudo nesta vida. Por sua vez, o meio de rompermos com essa circunferência que nos alastra para o vazio é experimentando o ilimitado, experimentando o amor, do jeito como Deus nos pede vive-lo.
Qual o teu limite? Vale o esforço para que seja o amor.