No cenário belíssimo de Veneza, Otelo, um general mouro à serviço do Estado, conquista Desdêmona, a bela jovem e filha de nobre local. Depois de enfrentar a ira do pai e defender-se com galhardia em face da acusação de tê-la enfeitiçado, Otelo parte a Chipre em companhia de sua bela esposa e para combater o inimigo turco-otomano.
Lembremos que Otelo foi um mouro cristanizado, renomado por suas diversas vitórias e façanhas em batalhas. Enamorou-se da Desdêmona, casando-se com ela em segredo. A paixão do casal foi a responsável pela continuidade dessa união. Porém, o que o mouro nem sonha, é que possuía inimigo pessoal inserido bem no círculo de convivência.
Era Iago, seu alferes que possuía potente inveja e, sabendo dos ciúmes que o mouro nutre pela esposa, aproveitou para arquitetar uma alentada vingança. Diversas vezes, Iago insinuava que Desdêmona tinha caso com Cássio, que era tenente e amigo de Otelo. E, armou diversas ciladas capazes de despertar a ira do general mouro.
Uma fala de Iago é reveladora:
-“Senhor, fique tranquilo. Se eu o sigo, é para servir-me às custas dele. Nem todos podem ser mestres, nem todo mestre pode ser realmente seguido. Há lacaios, desses bem prestativos que dobram os joelhos, tão contentes na sua serventia solícita que, feito asnos do amo, destroçam a vida só por uma ração.”
A trama inicial já parte do conflito que vai desnudando os personagens e suas motivações. Ademais, apesar de Otelo ser valoroso militar não era plenamente aceito por conta de sua origem. A sua cor continuava sendo inaceitável.
E, a união com Desdêmona era questionada a exaustão, como ela não pudesse amá-lo por vontade própria, mas apenas, por força de um feitiço.
Iago advertira: - “Cuidado, senhor, com o ciúme. Ele é um monstro de olho verde que vive a escarnecer da carne que o nutriu.”
É triste notar o que pode o ciúme produzir a uma pessoa violenta. Otelo pode nos oferecer diversos debates, principalmente, por seu desfecho, que seguindo de outros, é extremamente trágico e triste. Podemos percorrer o cunho psicanalítico[1] ao filosófico.
Como a inveja é um dos sete pecados capitais. Lembrando que todo pecado sempre ataca uma virtude e, portanto, possui uma destrutividade grande e fatal.
Afinal, para o invejoso receber algo de bom do outro é encarado como humilhação. Já o ciúme em sua essência triangular, posto que sempre há um terceiro envolvido. Ao contrário da inveja, pode possuir algo de bom, tal como cuidar do outro.
Porém, o ciúme delirante pode ser tão pernicioso como a inveja. Para o ciumento, existe sempre a traição iminente, de forma que é apenas uma questão de tempo para que tradição aconteça.
Desdêmona, por sua vez, em razão de sua ingenuidade não lhe permitiu desconfiar dos demais e enxergar o mal. Daí, não conseguiu defender-se , posto que só acreditasse na bondade.
Ainda constatamos muitas mulheres sofrendo por ciúmes de companheiros ou maridos, ainda temos pessoas se aproveitando dessas situações para incitar o ódio em outras e, ainda, temos muito que lutar para que esse tipo de situação deixe de existir.
A obra demonstra bem como um homem forte pode ser rapidamente envenenado através da mentira e, com isso, ser levado a trilhar um caminho errado. A poética é belíssima.
Com a peça Otelo aponta-se para os riscos ligados de um amor que singra os seus limites étnicos e, se aventura com um mundo diferente do seu. Originalmente, a peça fora intitulada “O Mouro de Veneza”, está é uma história inspirada na já conhecida novela Giraldi Cintio (novelista italiano).
Desdêmona foi investida por um erotismo a seu modo perverso, afinal, ao aceitar a relação com o “diferente” violando os tabus sexuais, e foi sempre ela, enigmática figura, ao excitar Otelo que a sente em demasiado jaez de mulher, taciturna e sensual, obediente, mas obstinada…
Novamente, foi em torno da figura feminina que se evidenciou a variedade das funções de que dependem ou a perdição ou a salvação, se , por um lado, como consequência da secularização do drama religioso, a heroína substituiu a Virgem na intercessão do perdão, por outro lado assumiu também, em certos casos, a imagem fatal e pagã da divindade guardiã de uma sociedade matriarcal que para si reivindica o direito da escolha do amante.
Otelo é uma das mais comoventes tragédias justamente por envolver temas tão frugais, como ciúme, traição, amor, inveja e racismo, o que pode trazer diversas e ricas reflexões e interpretações.
Cogita-se que o exagerado ciúme de Otelo relacionava-se com certo sentimento de inferioridade por causa de sua cor. O desequilíbrio do personagem inspirou até o nome de distúrbio, chamado síndrome de Otelo[i], onde as pessoas sobre com o delírio de que seus parceiros são infiéis e traidores.
Interessante nessa peça como as palavras assumem muitas vezes diferentes significados. Palavras como honesto, honestidade que aparecem mais de cinquenta vezes no texto. Iago foi chamado de honesta diversas vezes e por diferentes personagens.
Mas, essencialmente é pérfido, maquiavélico e inescrupuloso. Fingiu ter lealdade a Otelo quando, em verdade, odiava porque o mouro promoveu o soldado Cássio à tenente, preterindo-o.
As consequências do enredo da peça são terríveis: primeiro Iago, jurando lealdade ao seu general disse que para vingá-lo mataria Cássio, mas sua real intenção era assassinar Rodrigo e Cássio simultaneamente porque poderiam estragar seus planos. No entanto, isso não ocorreu conforme suas intenções, Rodrigo morreu e Cássio apenas ficou ferido.
Depois Otelo, totalmente descontrolado, foi a procura de sua esposa acreditando que ela o havia traído e matou-a em seu quarto. Shakespeare faz da cena um sacrifício religioso, dotado de conteúdo contratual tão sombrio quanto o niilismo de Iago e o ciúme “divino” de Otelo.
Após isso Emília, esposa de Iago, sabendo que sua senhora fora assassinada revelou a Otelo, Ludovico (parente de Brabâncio) e Montano (governador de Chipre antes de Otelo) que tudo isso foi tramado por seu marido e que Desdêmona jamais fora infiel. Iago matou Emília e fugiu, mas logo foi capturado.
Otelo, desesperado por saber que matara sua amada esposa injustamente, apunhalou-se, caindo sobre o corpo de sua mulher e morreu beijando a quem tanto amara. Ao finalizar a tragédia Cássio passou a ocupar o lugar de Otelo e Iago foi entregue as autoridades para ser julgado.
A dimensão da linguagem que envolve e emoldura toda a discussão aristotélica sobre os afetos[2]. A modernidade de Shakespeare recorre a um só tempo, ao rompimento e retomada. Pois, existe o rompimento em relação aos valores medievais sustentados na crença na graça divina e, portanto, desvinculados da vontade e da ação humanas.
Afinal, tais valores não mais se traduzem em tão absolutos e inabaláveis e, são postos em xeque. Há a retomada pela adoção e adaptação de modelos estéticos da Antiguidade Clássica, nos quais a atuação humana é efetivamente valorizada, em franca oposição aos ensinamentos teológicos medievais.
Shakespeare teve locus privilegiado pois pode combinar a longa tradição popular das narrativas orais com os elementos mais eruditos dos textos clássicos, tais como Homero, Sêneca e Ovídio e, do imaginário cristão, para criar obras representativas do momento histórico em que viveu.
Referências:
BLOOM, Harold. Anatomia da influência: literatura como modo de vida. Tradução de Ivo Korytowski, Renata Telles. 1 ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
CARPEAUX, Otto Maria. O Barroco e o Classicismo por Carpeaux. In: História da Literatura Ocidental. Volume 4. São Paulo: Leya, 2012.
SHAKESPEARE, William. Tragédias: teatro completo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008.no crônico ou paranoia, mas também pode indicar um quadro de demência por deterioração do córtex cerebral ou de alcoolismo crônico.
[1] Ademais, a inveja pode ser considerada um sintoma em certos transtornos de personalidade. Um exemplo é o Transtorno de Personalidade Borderline. É possível encontrar esse sentimento em pessoas que possuem o Transtorno de Personalidade Passivo-Agressiva e também em quem tem o Transtorno de personalidade narcisista.
[2] Platão enumerou quatro afetos que são prazer, sofrimento, desejo e temor; já Aristóteles, diferenciou onze tipos baseados na mistura de prazer e sofrimento: desejo, ira, temor, coragem, inveja, alegria, amor, ódio, saudade, ciúme e compaixão. Esta visão está proposta na obra "Retórica de Aristóteles".
A palavra affectus (verbete latino) tem a ver com a palavra grega “pathos” que significa cada estado do espírito humano, sofrimento e emoção da alma. Platão enumera quatro afetos que são prazer, sofrimento, desejo e temor; já Aristóteles, identificou onze tipos baseados na mistura de prazer e sofrimento: desejo, ira, temor, coragem, inveja, alegria, amor, ódio, saudade, ciúme e compaixão. Esta visão está proposta na obra "Retórica de Aristóteles". Segundo ele, a música possuía a qualidade de transmitir impressões e criar diversos estados de ânimo.
A palavra affectus (verbete latino) tem a ver com a palavra grega “pathos” que significa cada estado do espírito humano, sofrimento e emoção da alma. Platão enumera quatro afetos que são prazer, sofrimento, desejo e temor; já Aristóteles, identificou onze tipos baseados na mistura de prazer e sofrimento: desejo, ira, temor, coragem, inveja, alegria, amor, ódio, saudade, ciúme e compaixão. Esta visão está proposta na obra "Retórica de Aristóteles". Segundo ele, a música possuía a qualidade de transmitir impressões e criar diversos estados de ânimo.
[i] Síndrome de Otelo: como dito anteriormente, um distúrbio caracterizado por pensamentos delirantes de ciúme. O delírio que alimenta o ciúme pode ser parte de um transtorno crônico ou paranoia, mas também pode indicar um quadro de demência por deterioração do córtex cerebral ou de alcoolismo crônico.