Minha terra minhas gentes( o carteado em Vila Arriaga/África)

Do franguinho assado e arroz de cabidela que fizeram história na casa do Sr Antonio Duarte na Bibala/ Distrito de Moçâmedes/Angola, as boas lembranças da minha amiguinha que lá foi tantas vezes com o pai, meu padrinho Dr Elias Trigo, são empolgantes contos do antigamente.

Sr António era funcionário de um grande comerciante da minha terra Moçâmedes, Sr Venâncio, e como meu padrinho era veterinário contratado para cuidar dos rebanhos de gado, deslocava-se a Vila Arriaga muitas vezes. Havia até uma quartinho reservado para ele e família.

Marilia, a minha amiguinha, adorava acompanhar o Pai nessas viagens de trabalho.

A casa era muito lindinha, toda ela decorada com móveis de madeira e peças decorativas em ferro forjado , aquelas antiguidades que até dava pena pôr a uso. Na minha opinião, tudo antigo era tão belo que poderia ficar só para enfeite. O quartinho,embora simples era muito bem cuidado e limpo. Uma cama de ferro num dos cantos com cabeceira lindíssima trabalhada em ferro, uma cômoda no outro canto do quarto onde se via um copo, uma moringa de barro com água sempre fresquinha e na outra ponta do quarto uma armação alta em ferro com apoio para vasilha de cerâmica florida e jarro de água para a higiêne da noite. Pendurada ao lado um toalhinha de mão com um delicado bordado a ponto cruz. Ou seria "ponto pé de flor"?

O que fosse! Era delicadíssimo! Assoalho de madeira e cortininhas de renda branquinha na janela a embelezar ainda mais o ambiente. Ao chegar da noite Marília mal via a hora do desligar o gerador e pular na cama com aqueles lençóis branquinhos e tão bem engomados que pareciam do mais puro linho. Ela não se lembra de outra vez na vida ter dormido em lençóis com tal capricho; cheirinho delicioso de ferro de passar roupa.Como, ferros a carvão podiam passar roupa com tal esmero se hoje os elétricos não conseguem ?- pergunta-se ela até hoje.

Muitas vezes iam ao Clube ao final da tarde .O clube de Vila Arriaga era um ótimo ponto de encontro dos senhores da terra que gostavam de um carteado. Marilia não perdia a ocasião. Agarrava-se à mão do pai e lá iam os dois no final da tarde ver as habilidades de um senhor só com um braço que era um artista a baralhar cartas. Perante os olhos atônitos de todos a mão dele empinava as cartas, fazia-as voar, pousava-as e levantava-as de novo. Iam e voltavam perfeitamente enfileiradas. Que show! Levava-as ao céu quantas vezes achasse necessário e com aquele barulhinho característico que os jogadores tão bem reconhecem. Tudo muito sério.Era a coisa mais linda de se ver. Batota ali não havia, e só a ele, ao senhor sem braço, era dada aquela responsabilidade. Baralhada pronta e começavam o jogo.

Ao fim das tardes, quando não reunidos no Clube os homens da terra se encontravam na varanda da casa do Sr Antônio onde havia sempre preparada uma mesa de gamão para quem quisesse participar. Uma “Cuca” ao lado com um pratinho de tremoços e estava organizado o encontro. O ambiente era exatamente como as refeições: entra quem quer , come quem quiser( Joga quem quiser, no caso).

As casas mais antigas das pequenas povoações em Angola ainda não tinham casas de banho( banheiros), dentro de casa principal como era o caso da residência do Sr Antônio. Havia um anexo à casa principal, geralmente pouco cuidado, e quem o usasse teria de estar atento.Entrava-se calçado. Marília sempre levada os chinelinhos dela, já trazidos de casa prontos para a ocasião. Havia um grande buraco no chão com um degrau e tinha-se de lá entrar, descer e se agachar. Era assim ou nada!Tudo por ali era tão improvisado que realmente tornou-se como que algo esquecido da casa principal.Via-se lodo e coisas verdes por todo o lado.

Que preocupação para a pequenina Marilia! Como fazer para não escorregar e cair lá para dentro ? Por sorte nunca lhe apareceu um sapo na hora. Seria ela e o sapo aos pulos, com toda a certeza e ploft!Os dois lá para dentro.

Conheci de perto esses buracos, também. Nossas casas tinham quartos no quintal destinados aos nossos empregados e nós os usávamos em determinadas situações. Nossos pais nem sonhavam que isso acontecia mas... tinha de ser. Muitas vezes era caso de “vida ou morte”."Tau" pra direita, "tau" para esquerda e os buracos eram necessários naquelas ocasiões. Brincadeiras de “cowboiada”, trincheiras , esconderijos e 2 grupos de crianças: os da turma da frente da casa e dos da turma das traseiras. A quem o sorteio destinasse as traseiras do quintal estava praticamente com o jogo ganho pois ficava com o “buraco” dos empregados que dava acesso à melhor guarita: o teto do forno de fazer pão. Precisávamos do buraco para depois passar pela minúscula janela e ter acesso a ela.Valia a pena! Era o melhor refúgio do quintal . Gritos de “vitória”ao final das tardes. Na hora do "aperto"era aquele buraco que usávamos pois não podiamos interromper o jogo.

Olhando para aquela janelinha de acesso ao teto do forno, eu sempre me perguntava depois de adulta :

-" como, um dia na vida eu tinha passado naquele espaço se nem mesmo uma perna minha de "gente grande" lá entrava?"

Lana

Lady Lana
Enviado por Lady Lana em 13/10/2020
Reeditado em 13/10/2020
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