Encontro entre Edgar Allan Poe e Ernesto Guevara
De uma indignação cultural nasce o encontro entre o escritor americano Edgar Allan Poe e o médico e guerrilheiro argentino Ernesto Guevara. O cenário é Havana na rua Empedrado, na Havana Velha, próxima à La Bodeguita, frequentada pelo escritor Ernest Hemingway durante o período em que viveu em Cuba.
Allan Poe chegou primeiro, olhou em volta e entrou na Taberna Sierra del Corvo. Tirou chapéu e capa, colocou-os em um cabideiro de pé, sentou-se na mesa ao fundo de frente para o balcão. Poe chamou o garçom e pediu um mojito de rum branco e uma porção de chicharrone.
A Taberna estava vazia, em um velho rádio ouvia-se Cachao Lopez tocando Mambo. A música, que tem um solo de flauta envolvente, deixou Poe animado e ele escreveu em um guardanapo: Os movimentos sonoros dessa música balançam a caveira quente do diabo.
Um Jeep estacionou na porta da Taberna, um jovem de cabelos longos, pele morena, barbudo e usando uma boina desceu e entrou. O rapaz com aparência rude retirou do bolso um charuto, acendeu e olhou em volta. Percebeu a presença de Poe ao fundo e se aproximou: - O senhor é Edgar Allan Poe, certo?
Allan Poe disse que sim e pediu que Guevara se sentasse: - Por favor, comandante! Fazendo sinal para que se sentasse. Ernesto pediu uma dose dupla de rum puro. Por alguns segundos se entreolharam, a aparência soturna e pálida de Poe contrastava com o despojamento natural e o viço de Guevara. Poe parecia mais velho, porém tinham praticamente a mesma idade, Poe tinha um ano a mais que Guevara.
O assunto girou em torno da contracultura que eles representavam dentro de suas características e épocas. Guevara era um revolucionário marxista, escritor, diplomata, autor de frases eternizadas como “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. O ocidente capitalista teve de engolir o símbolo que sua figura representa, a rebeldia revolucionária que se tornou um signo global da cultura popular.
Allan Poe chegou a pertencer à uma Academia militar, mas sua falta de disciplina e desobediência, causaram sua expulsão. A morte de sua esposa o levou ao consumo excessivo de álcool. Considerado gótico, Poe fez sucesso escrevendo sobre a morte, os sinais físicos dela, os efeitos da decomposição, pessoas enterradas vivas e reanimação de mortos. O poema The Raven, o mais conhecido, narra a angustiante busca de respostas da vida em relação à morte.
As doses de rum molhavam as palavras e o entusiasmo daquelas duas insígnias da história, dois monumentos da contracultura, foi quando Poe começou a sentir os primeiros sinais de delirium tremens.
Partiram dali e fizeram uma breve passagem na La Bodeguita, tomaram a saideira com Pablo Neruda e Salvador Allende, que também frequentavam o lugar. Antes da despedida Allan Poe escreveu na parede: "Lord, please, help my poor soul", ao lado do quadro com a célebre frase de Hemingway: “"My mojito in La Bodeguita, my daiquiri in La Floridita".
Duas figuras extraordinárias e extemporâneas em um tempo equidistante entre Havana e Massachusetts, incompreendidas e desconhecidas pela anticultura prevalecente nos dias de hoje, mas que foram unidas pela indignação cultural de um poeta sentado no beiral da janela do tempo, sem boina e sem chapéu, sem capa e sem charuto, mas com a ternura revolucionária e a verve poética de quem afunda o chicharrone no rum antes de comer.
Ricardo Mezavila