Mil e uma Noites
A mulher entrou no salão sóbrio do hotel chique e, displicentemente, olhou para os lados. A decoração elegante era típica; ali só havia homens e todos os olhares se voltaram para ela. Percebeu isso e, mesmo assim, com uma arrogância e domínio muito pessoais, sentou-se num sofá disponível e pediu uma bebida. O garçom, certamente horrorizado, mas acostumado às excentricidades de estrangeiros – uma mulher só, e bebendo, imagine-se! - serviu-a.
Acostando-se, ela pôs-se a olhar todos os detalhes do luxuoso ambiente: as cortinas pesadas, a meia luz, os almofadões que serviam de sofás e que tinham mil encostos vermelhos e dourados onde os homens se reclinavam. Muitos fumavam, alguns chupavam sonhadores seus narquilês, poucos bebiam. Não fora o luxo, aquela seria uma cena comum naquelas paragens.
O desenho lindo das janelas e portas, a rebuscada arquitetura local, ela já tinha tido, durante o dia, a oportunidade de apreciar e de se encantar diante de cada portão, cada ameia, cada minarete com que seus olhos ávidos se deparavam. Um mundo diferente, mas muito real que ela viera ver como se fosse de sonhos, instigada por suas leituras infantis que a levavam a Ali - Babá, xeiques, camelos e desertos.
Quando seu olhar distraído relanceou de novo em volta viu, fixados nos seus, uns imensos olhos negros que – ela não tinha certeza, encimavam um nariz grande e uns bigodes fartos.
Esses olhos lhe disseram algo que a mulher não soube discernir. Constrangida, fingiu que observava o garçom que o dono deles chamou o garçom e lhe segredou ao ouvido qualquer pedido.
Instantes depois, para sua enorme surpresa, esse lhe trouxe numa bandeja de prata, uma finíssima taça de cristal que continha vinho e, ao lado dela, uma rosa. Inquiridora, olhou para ele, que apontou o cavalheiro de olhos negros, recostado pouco adiante.
O homem se levantou do seu almofadão dourado, os olhos enormes foram se aproximando, sorrindo e ela o viu sentar-se a seu lado, no sofá estrangeiro. Conheceram-se (ou se reconheceram?
Assim. Sem apresentações, cumprimentos, nem mesmo olhares trocados sub-repticiamente.
Como num passe de mágica da lâmpada de Aladim, o hotel se foi, a semiobscuridade, a decoração, as demais pessoas, tudo, tudo, e ela se viu em um lugar encantado em que olhares lânguidos olhavam por muxarabiês cuidadosamente talhados em balcões cerrados, ao mesmo tempo em que a extensão imensa de areia desenhava dunas sob o sol escaldante. Mas isso não importava. O sol inclemente não os atingia – a tenda que os cercava era enorme e tinha véus diáfanos e cores alegres.
Sentados, lado a lado, naquele mundo só dela que excluía o hotel de luxo, voltaram-se um para o outro. Numa língua que não saberiam dizer qual era, durante toda a noite conversaram. Falaram de suas vidas, de seus mundos, de areais sem fim, de florestas intransponíveis e árvores gigantescas, de araras coloridas e camelos de olhar sobranceiro, de secura impensável e praias de coqueirais, céu e mar azuis, de milênios de civilização e de poucos séculos de história.
As horas passaram, o assunto não tinha fim, seus olhos também falavam por eles. Seus corações se entenderam e ele prometeu a ela que iria, sim, ao seu país, ainda que fosse só para vê-la novamente. Ele prometeu. Ela acreditou.
O dia raiou através dos véus transparentes ou das pesadas cortinas. Era preciso retornar, e o sonho apenas mal vivido devia terminar.
Era preciso regressar.
A volta, desprezando o enorme avião prateado, ela o fez num magnífico e único tapete voador que atravessou todos os mares da Terra.
Mas esse, acostumado a receber ordens diretamente do Altíssimo, a quem servia, recusou-se terminantemente a dirigir-se a São Paulo, no segundo escalão.
Enfrentando ventos e tempestades, tomou outro rumo e foi prostrar-se, grave e ameno, suavemente, no Galeão, sob os braços abertos do Cristo Redentor.
Que Alá seja louvado.