Nossas gentes...( carne de caça e a banheira na Bibala)

Nossas terras nossas gentes( carne de caça e a banheira na Bibala)

Como Vila Arriaga no Distrito de Moçâmedes/Angola, tinha estórias inusitadas pra contar e nós, Moçamedenses, tanto quanto os tchicoronhos de Sá-da-Bandeira éramos protagonistas!... Andamos muito por aquelas estradas, empoeiradas, sem asfalto mas, de lembranças maravilhosas; picadas de terra batida por todo o tempo que por ali passamos. Por esse motivo as viagens tornavam-se mais longas e as paradas para comer e beber alguma coisa fresca eram quase que obrigatórias .Lembro-me até hoje das nossas conversas com meu pai por aquelas estradas empoeiradas:

” Pai, ainda falta muito?” A resposta era sempre a mesma:

-“ Não. Estamos quase a chegar”.

As paradas em Vila Arriaga eram do tempo da passagem pela velhinha serra da Chela. Depois, após ter sido construída a nova estrada na Serra da Leba acabou todo aquele “conto vivo” . Que pena! A nossa Bibala ficou quase que esquecida para muitos.

Tal como outros pontos em locais mais distantes, encontravam-se restaurantes simples com boa comida caseira mas quando se tratasse de carne era a carne de caça a maior, e melhor pedida. Por toda aquela região era muito comum a caçada a cabras do mato, gazelas, tanto quanto a aves como capotas e codornizes. A carne de olongos também dava bifes divinos e era extremamente macia , de paladar delicioso. A carne de caça embora não tão freqüente nas cidades era muito procurada em restaurantes de estrada , povoações pequenas como a nossa Bibala.

Sem qualquer restrição mas, como era uma carne que não tinha fiscalização sanitária era recusada por alguns como por exemplo meu padrinho Dr Trigo, médico veterinário que com certeza sabia dos riscos. .

Quando íamos a Vila Arriaga gostávamos de comer num hotelzinho de beira de estrada já conhecido de todos : Bibala Hotel. Meu padrinho ia muitas vezes a trabalho e parava para almoçar tal como meu Pai .

Todos no hotel já sabiam que meu padrinho não comia carne de caça e então ofereciam outras especialidades da casa mas, certa vez ele apareceu de surpresa e não foi possível mudar a programação daquela semana. Apenas havia carne para oferecer e tinha de ser servida pois a conservação era muito problemática.

-Primeiro dia-cabra do mato assada.Meu padrinho não quis comer

-dia seguinte- carne guisada. Ele não quis comer

-Terceiro dia- almôndegas. Ele também não quis.

Aflitíssimos porque o Dr Trigo sairia com fome da mesa , trouxeram-lhe um prato cheio de azeitonas muito, muito pequeninas, que mais pareciam(...), ao que ele olhando bem diretamente para as ditas cujas logo disse:

-“azeiganitas” da mesma cabra? – Não quis comer.

Na semana seguinte meu Pai teve de ir a trabalho à Huíla e eu e minha mãe fomos com ele.Era hábito ele sempre viajar com um dos filhos mas daquela vez foi também a minha mãe. Passando por Vila Arriaga seria o Bibala Hotel paragem obrigatória para se comer a melhor carne das redondezas. E assim foi!

Restaurante à vista, finalmente.Era um dia quentíssimo. Lembro-me que quase derreti .Paramos o carro e lá veio o dono já de braços abertos receber-nos à porta. Meu pai, já conhecido por seus hábitos pouco ortodoxos e com seu jeito social desprendido de protocolos, pediu logo para ir à cozinha falar com o cozinheiro. Pelo que eu entendia, aquela era a maneira dele consultar o cardápio dos restaurantes. Fazia sempre a mesma coisa e ninguém levava a mal; já o conheciam e sabiam que ele ignorava a existência de ementas( cardápios).O chique para ele era ser apresentado aos cozinheiros. Meu pai era uma figura divertidíssima e tornava-se conhecido por sua personalidade extremamente gentil mas quase que exageradamente “à vontade” com tudo e todos.

E assim foi. Logo que meu pai chegou à mesa, exuberante e feliz pela maravilhosa refeição que tinha mandado preparar com o já amigo cozinheiro, minha mãe levantou-se e dirigiu-se ao banheiro( casa de banho) de onde voltou quase em seguida.

-“ Então , Nelinha, não encontraste a casa de banho”?

-“Manuel João, eu perdi a fome. Vamos embora”

-“ Mas estão preparando uma carne de caça especial para nós.”

Minha mãe estava com uma expressão apagada, e falava em tom baixo

-“ Manuel João, não tenho fome”

À segunda insistência da minha mãe meu pai entendeu que algo estava acontecendo , levantamo-nos da mesa e fomos embora.

Chegando ao carro minha mãe conseguiu falar e relatar o que tinha visto naquele banheiro e pelo que tinha entendido servia igualmente à família do dono . Sabia-se que ele tinha uma dúzia de filhos.Aquela banheira grande com certeza que , para além de armazém também seria para uso da familia .Era muita gente para tomar banho.

E , então contou que havia uma banheira coladinha ao vaso sanitário cheiinha de carne de caça e ainda com enormes coxas das cabras ensangüentadas e sem corte . Era ali, aquela banheira, o depósito das carnes servidas à mesa. E terminou dizendo que lhe pareceu ver um par de olhos pretos no cantinho da banheira .Os olhos do bicho, com certeza e jogadas na beirada da banheira estavam toalhas ainda molhadas, com toda a certeza por uso recente. Teriam pois de ir a outro lugar que não tivesse carne de caça ou ficariam sem almoçar naquele dia.

-“Está bem Nelinha. Se até os olhos do animal viste dentro da banheira então tens toda a razão”- disse meu pai.

“Quem sabe então irmos a casa do Sr Antonio Soares comer um franguinho assado ou um arroz de cabidela?"- sugeriu ele.

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Lana

Lady Lana
Enviado por Lady Lana em 10/10/2020
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