SINTO SAUDADE
Uma das características da velhice é sentir saudade e, como todo velho que se preza, eu também sinto.
Não aquela saudade doentia, que machuca que cega e que faz a pessoa viver de passado, mas a saudade sem as penas cantadas por Luiz Gonzaga na música “Qui nem jiló”, daqueles momentos alegres, das pessoas e ocasiões festivas, dos momentos de glória das realizações, ainda que mesquinhas, mas que no momento da ocorrência nos levaram ao nirvana.
Saudade das ruas sem calçamento, dos moleques sujos e malcheirosos que eram nossos companheiros dos jogos de bola de gude, pião, papagaio, garrafão, bola queimada, futebol de onde voltávamos para casa sem a ponta do dedão, da ardência bombástica do mercúrio cromo ou do merthiolate que, via de regra era acompanhada por puxões de orelha e o sopro milagroso para aliviar a dor.
Saudade dos bailinhos nas residências ou no clube, das garotas cheirosas de pele macia e cabelos endurecidos pelo laquê que, derretido pelo calor dos pares dançantes, se pregava em nosso rosto.
Dos blocos de carnaval com fantasias rotas, instrumentos desafinados, mas com cadência irresistível que arrastava multidões como as procissões votivas nas festas religiosas.
Das santas missões do Pe. Peyton e dos terços de plástico distribuídos à mancheia que eram usados nos pescoços das garotas à guisa de colar. De subir em árvores para comer fruta madura, de andar descalço em areia quente, de sair sem capa ou guarda chuva e de tomar banho nas biqueiras das calhas da igreja em dias de tempestade.
Das conversas de família e das histórias ancestrais, narradas em primeira pessoa, após o jantar.
Do perfume das flores dos jardins, do canto dos pássaros, do cantar dos galos pelos quintais anunciando o nascer de um novo dia.
Das feiras livres.
Dos pregões característicos de cada vendedor ambulante, com dia e hora marcadas para passar pelas ruas do bairro. Do entregador de pão e leite, do vendedor de miúdo e da carrocinha do mascateiro que, como empório de respeito, tinha de tudo um pouco.
Dos jornais “gordos” na edição domingueira, das matinês no cinema do bairro nas tardes de domingo, com direito à pipoca, pirulito, amendoim cozido ou torrado com tremenda carga de sal.
Do sorvete de carrocinha e do caldo de cana com pão doce.
Saudade da farda nova no início de cada ano letivo, dos professores sérios, competentes, do bedel carrancudo, disciplinador, mas também “pai” amável e conselheiro.
Dos livros grandalhões da biblioteca pública, dos trabalhos encapados com cartolina, das feiras de ciências, das provas orais e da alegria pela chegada das férias.
Dos desfiles militares em 7 de Setembro e da abertura oficial da temporada de praia.
Dos banhos de riachos límpidos aonde tomávamos banho e pegávamos, entre plantas aquáticas, os peixinhos de aquários. Dos enormes aruás e seus ovos cor de rosa em hastes de taboa balançando sobre a lâmina d’água.
Das festas de ano novo, natal, carnaval, das festas juninas com fogueiras, comidas e danças típicas.
Saudade dos beijos molhados, da pele macia e do cabelo cheiroso da primeira namorada, do frisson pela aproximação do pai ou do irmão, das revistas em quadrinho e dos álbuns de figurinhas.
Tudo isso ficou num passado bem vivido, mas que, felizmente, não voltará.
Morreu a maioria dos nossos colegas, muitos tornaram-se amargos pelas agruras da vida, a tecnologia trouxe todas as diversões e as mazelas do mundo para dentro das nossas casas, aonde cumprimos o confinamento imposto pela violência, pelas doenças endêmicas e pela dificuldade de transporte.
O mundo cresceu e todas aquelas coisas que antes estiveram bem próximas agora estão distantes, mas pelo milagre dos smartphones estão nas telinhas e ao alcance das mãos, miniaturizadas sem cheiro e sem sabor, claro.