Histórias das nossas gentes ( dentaduras folgadas)

Tempos difíceis, aqueles da nossa chegada a Portugal após a saída abrupta de terras de África. Nos últimos tempos, já com clima de independência, nos faltavam condições e disposição para várias coisas tal como cuidar mais atentamente da saúde , por exemplo, mas na verdade tudo muito agravado pela falta de estrutura e disponibilidade de profissionais à altura de bons serviços; também eles sentiam-se desmotivados e sem rumo.

Pela minha experiência pessoal, dentro da área de saúde os que mais cedo deixaram Angola foram os dentistas e talvez pelo alto custo do material e a dificuldade de o adquirirem. Lembro-me que nos mais para o final nós já não os procurávamos. Não adiantava bater-lhes à porta pois tinham todos deixado a cidade.Se uma ida normal ao dentista já não era algo prazeiroso de se fazer, pior ficou! Naturalmente nos tornamos descuidados com a saúde da boca , tanto conosco como com nossos familiares mais próximos.

Assim aconteceu com uma angolana vivendo em Portugal e casada com um português da gema mas também com alguns anos de vivência em África, um português que não se incomodava muito com a saúde da boca e já desde muito cedo sem seus dentes naturais na mandíbula superior. Minha amiga aceitava com naturalidade aquela situação mas por vezes aconselhava-o a que fosse ao dentista para “dar uma apertadinha” na placa pois observava a prótese a balançar-lhe na boca. “Qualquer dia ficas sem eles!” - disse-lhe ela um dia à janela do 2º andar do edifício onde moravam .

Aí “boca”!!! O que ela foi dizer!... De repente escuta um grande grito e era o próprio:

-“ Perdi meus dentes. Caíram na rua.Por favor desce e pega-os lá embaixo.Eu fico daqui a tomar conta deles.”

E assim foi mas, entretanto um velhinho passa na calçada e ao ver algo brilhando a seus pés não resistiu em pegar.

“ – Não , não faça isso. Larga isso homem, são meus dentes.Larga , que isso é meu! Caíram agora- agorinha da minha boca.”-disse o marido de minha amiga angolana.

Que desespero lhe deu! O velhinho parecia feliz com o achado mas felizmente ela chegou a tempo e pediu-lhe que devolvesse. Dentes na boca outra vez.

Missão cumprida naquele dia, mas poucos dias depois foram passar uns tempos à aldeia a casa dos sogros e ao que parecia estórias de dentes e dentaduras já faziam parte de um passado longínquo.

Casa linda, muito conforto e descanso.As refeições eram preparadas pela mulher do caseiro e que morava no terreno da propriedade numa outra casa a poucos metros. Tempo de inverno, frio, casas ainda sem luz elétrica com geradores ou mesmo que à luz de velas ou lampião, portanto ali com certo desconforto no transporte da comida da casa dos empregados para a casa da família. Assim sendo, minha amiga teve a idéia que todos fossem fazer as principais refeições a casa dos empregados. E assim foi.

Finalmente à mesa! O marido dela, como sempre aflito com a dentadura solta , achou que seria melhor tirá-la e colocá-la dentro de um copo com água.Assim fez.

Jantar maravilhoso, regado a bom vinho da aldeia, ambiente quase que romântico à luz de lampião. Acabaram de jantar e despediram-se .Chegando à casa principal ele lembrou-se que tinha esquecido a placa da prótese .Felizmente havia um telefone direto para a casa do caseiro e telefonou imediatamente para a Alice.

“ Alice, meus dentes estão aí.”

“Onde , menino?”

-“Dentro de um copo de água”-respondeu ele

Começa ela a chorar copiosamente.Chorava sem parar, a coitada.

-“ Ó menino , já lavei toda a louça . Lavei também todos os copos e seus dentes já se foram. Entraram pelo buraco da pia”- disse ela

Naquele tempo não havia um escoamento natural das águas da cozinha e sem ralos para a saída as pias eram feitas com buracos enormes de escoamento que levavam tudo por ali abaixo num piscar de olhos.

Salvou-lhe o bom vinho da aldeia daquela noite que, mesmo sentindo a falta dos dentes ficou-lhe a sabor daquele néctar dos deuses.No dia seguinte pensaria como resolver a situação.

A sorte dele foi ter encontrado um ex colega da tropa( exército), então um famoso dentista que solucionou o problema.

Ó , coisa boa! Tudo resolvido, nova prótese , dentes no lugar e a promessa que nunca mais iria deixá-los dentro de um copo de água perto de uma pia com um grande buraco à luz de lampião numa cozinha sem luz elétrica.

Lana

Lady Lana
Enviado por Lady Lana em 08/10/2020
Reeditado em 08/10/2020
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