SEU ABEL

        “Pai, tem uma ambulância na porta do seu Abel, será que ele está doente?” Era meu filho de doze anos chegando da rua. Saí na porta e vi tratar-se de uma UTI móvel, resolvi averiguar. Cheguei a tempo de ver os paramédicos trazendo seu Abel numa maca, ele estava consciente e acenou para mim. Os homens pararam instintivamente pois pressentiram que ele queria falar comigo. Cheguei perto ele pediu que me aproximasse ainda mais e então me disse: “Por favor, vigie minha casa, não deixe que ninguém mexa em nada, sobretudo na minha coleção de armas, e se eu não voltar…” então o interrompi “fique tranquilo seu Abel eu tomo conta de tudo. E deixe de bobagem, o senhor vai voltar sim, e vai estar tudo como deixou”, mas ele não se conformou: “Se eu não voltar, fica tudo sob sua guarda, deixei alguns documentos em cima da mesa. Examine com cuidado e entenderá tudo”. – Seu Abel morava sozinho, e mesmo passando mal, teve forças para ligar para o seu convênio médico pedindo remoção para um hospital. Fiquei olhando a ambulância até virar na esquina. Foi nosso último contato visual. Seu Abel fez um quadro de dissecção de Aorta, foi operado, mais não resistiu. Fui vizinho dele uns oito anos, ficamos amigos as vezes o convidava para jantar em minha casa e conversávamos até tarde, Ele quase nunca falava de si mesmo, família, parentes. Tudo que eu sabia era que ele era Sergipano, e morava em Goiânia há quase vinte anos. Já o conheci aposentado do ministério da saúde. Nunca vi visitas em sua casa. Nunca me apresentou um filho, um parente, estava sempre muito solitário. Durante as celebrações fúnebres que nós os vizinhos providenciamos, apareceram alguns pretensos parentes. Nunca os vira antes mas não cabia a mim tecer nenhum tipo de julgamento. Eu iria fazer exatamente como seu Abel me recomendou. Alguns dias depois resolvi abrir a casa e tomar as providências. À primeira análise deduzi que seu Abel já vinha se preparando para a partida há meses. Tinha uma longa carta me nomeando seu inventariante, que deveria ser registrada no cartório, e um bilhete a parte dizendo que as explicações estavam no pequeno gravador digital sobre a mesa. Liguei o gravador, e senti um arrepio ouvindo a voz do amigo falecido se dirigindo a mim, foi uma sensação estranha. Dizia ele: “Prezado Nilson, quando você ouvir esta gravação eu já terei partido desta vida. Já me custa muito viver desta maneira solitária e triste. Tenho família em Lagarto-SE, filhos, irmãos, tios, primos, mas fui obrigado a me afastar deles pelo seguinte motivo: Sou da família “Portela”, inimiga da família “Bezerra” há há mais de cem anos. Essa escaramuça já custou muito vidas de parte a parte. Acho que uns quinze ou vinte já foram mandados mais cedo para cemitério. Depois que minha primeira mulher morreu, passado o luto, eu, um homem de cinquenta anos de idade, me vi envolvido a princípio, depois apaixonado por Domingas Bezerra. Tornei-me um pária, um traidor para ambas as famílias. Fui ameaçado de morte pelos Bezerra, e os Portela me abandonaram à própria sorte. Me viraram a costas como se eu fosse um leproso. Me sentindo acuado, vendi o que tinha por lá e fugi com Domingas para cá”. Era uma longa narrativa, interrompida por momentos de choro e emoção. “Me estabeleci por aqui, Transferi meu emprego e fui até me aposentar. Construí um grande patrimônio em imóveis, ações, debêntures, participações societárias. A relação está aí junto com os papéis. Tive dois filhos com Domingas, o mais velho morreu aos cinco anos vítima de um tipo raro de hepatite, e o outro não chegou a completar um ano. Acho que nosso sangue não era compatível. Por fim, Domingas também se foi levada pelo câncer. Então fiquei eu e Deus dentro desse casarão”. Nunca mais pisei na minha terra. Tentei ligar para meus filhos muitas vezes, mas fui sempre tratado com indiferença e desprezo. Conclusão, não tenho herdeiros. Já deixei um documento no cartório autorizando você a dispor de todos os meus bens da maneira que quiser. Agradeço pela sua amizade, seu apreço. Você foi meu único amigo durante os últimos oito anos. Portanto proceda de acordo com sua vontade, faça o que quiser”. e terminou aquela estranha gravação com um “adeus amigo”. – Fiquei muito tempo ali sentado olhando o gravador e pensando no que fazer. Depois do processo legal tomei posse dos bens e da conta bancária de seu Abel. Era muito dinheiro. Alguns parentes tentaram invalidar sua vontade na justiça mais aos poucos foram desistindo. Enquanto isso criei uma pequena fundação à qual dei o nome “FUNDAÇÃO ABEL FAGUNDES PORTELA”, que se destina a ajudar estudantes pobres, da rede pública de ensino e com bom potencial acadêmico, a realizarem seus sonhos. – Foi a maneira que achei, para dar um pouco de sentido à vida e à luta íntima de um ser humano do bem. Acho que seu Abel deve estar satisfeito.
Al Primo
Enviado por Al Primo em 07/10/2020
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