Nossa terra, nossas gentes( as”cacundas” do João e camelos no nosso deserto)

Tivemos camelos e um moinho na nossa terra. Um moinho para moer milho e trigo construído por antigos colonos no século XIX, integrantes da 2ª colônia de portugueses vindos de Pernambuco/Brasil .Chegados àquelas costas ,àquele oásis lindo e tal como um 1º grupo pouco tempo antes, aqueles corajosos colonos fizeram nascer uma pequenina povoação, depois vila, a que foi a nossa cidade de Moçâmedes ao sul de Angola.

O lindo moinho, primeiramente pertencente à família Torres e depois a Abilio da Cunha, pai do Dr Úrbulo Cunha, ficava situado num largo descampado no centro da cidade e os camelos que aqui paravam obrigatoriamente para carregar as farinhas, água potável e víveres , transportavam as mercadorias para zonas mais isoladas; pescarias longe de tudo mas localizadas em praias paradisíacas, onde muitas famílias moçamedenses viviam.

Com o passar do tempo os camelos foram deixados livres no deserto, mas apareciam de tempos em tempos, mais precisamente de 7 em 7 anos. Era o que os empregados diziam aos seus patrões. Eram eles os primeiros a avistá-los e a avisar sobre o grande acontecimento; era um dia diferente na cidade e principalmente para as crianças que esperavam ansiosamente aquele momento. Eu ainda não era nascida naquela época mas a Marilia minha amiguinha, a filha dos meus padrinhos que ainda muito menina cuidou de mim como se fosse minha irmã mais velha conta, com grande entusiasmo, como se formavam grupos das crianças pelo deserto, a pé, em expedições organizadas até aos camelos juntamente com os nativos e alguns dos empregados que trabalhavam nas nossas casas.

Eram eles a cuidar e a orientar a travessia do deserto, mais ou menos uns 7 Kms na ida e uns 7 para voltar. Marília, uma das mais pequeninas, ia nas “cacundas” do fiel João, o empregado do pai que, orgulhosíssimo carregava nas costas , nas “cacundas”,a pequenina menina. Que alegria ao avistá-los! Eram muitas crianças, e de todas as idades. Marilia ainda se lembra bem da Fernandina filha do Sr Santos do matadouro que, apesar de bem mais velha pulava tanto quanto os pequeninos. Falavam e gesticulavam sem parar e queriam correr até eles mas, eram orientados a que não o fizessem.Seria imprevisível a reação pois viviam há muito tempo sós, no deserto, sem a proximidade de pessoas.

Lá estavam os camelos no caminho e horário previstos.Sim, exatamente de 7 em 7 anos eles passavam por ali, naquele ponto, perto da cidade. Uma cáfila de uns 6 ou 7 animais , altivos, num caminhar lento como que sonolentos, a passos curtos.É assim que a menina pequenina, como lhe chamava o empregado João, se lembra daquele encontro .

Como o fiel empregado João gostava da companhia das crianças! Era funcionário no trabalho do meu padrinho nos serviços de Veterinária , mas ia lá muitas vezes a casa da família ver as meninas. Minha madrinha sempre lhe oferecia à chegada o café com leite e o pão e ele, sentado num banquinho na cozinha contava casos e histórias bonitas de tempos antigos, ainda sobre escravos, seus ancestrais. Vivia-se naquela casa em clima de contos pois também o Francisco, o fiel cozinheiro,era filho de escravos e adorava igualmente sentar-se no banquinho da cozinha a contar “ casos e coisas”.

O João sempre acompanhava a família, ia onde as suas meninas fossem: Marília e Luisa.

Em outras ocasiões, diferentes mas não menos divertidas, lá estava a Marília outra vez nas “cacundas” dele. Em determinadas épocas do ano o nosso maior e mais caudaloso rio da cidade, o Bero, tinha grandes enchentes e impedia a travessia . Os nativos, a postos, lá estavam para resolver a situação: para os adultos eles construíam balsas mas as crianças eram levadas às costas até à outra margem. Era uma festa. Esperavam a corrente aliviar um pouco e lá iam eles pegar mais crianças. Coisas de África, momentos tão felizes que o tempo não apaga!

Com o tempo os camelos deixaram de parecer e eu já não cheguei a conhecê-los mas o velho moinho lá estava inteiro e majestoso e, apesar de abandonado ainda servia de teto e abrigo a alguns pobres da cidade. Estórias menos bonitas, mas que também fizeram a nossa história.

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Lana

Lady Lana
Enviado por Lady Lana em 03/10/2020
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