Já convivi com demônios

Já convivi com demônios. Isso mesmo: convivi com demônios. Tudo começou muito cedo, de forma natural e – pra mim – inofensiva. Antes dos 08 anos, carregava nas costas o peso imposto e aceitado – como se tivesse consciência do que se tratava – de, algum dia, ser um deles. Pautei minha vida no que considerava certo de acordo com os preceitos estabelecidos pela comunidade. O resultado não poderia ser outro: autocobrança excessiva, insegurança, complexo de inferioridade, baixa auto-estima, crise de identidade. Tudo antes dos 14. A essa altura, tive consciência dos primeiros sintomas depressivos e ansiosos, que vale ressaltar, já me perturbavam desde muito antes. No entanto, já estava convencido que não podia expor minhas fragilidades e erros, afinal de contas, sempre fui referência para os da minha idade pelo comportamento íntegro, reto, beirando a perfeição. Eles, os demônios, acreditavam. Eu gostava, lógico, pois ali me afirmava como sujeito de cognição invejável, de caráter exemplar. Mesmo que por dentro, tivesse consciência dos meus erros e vivesse – sem sucesso – tentando corrigi-los sozinhos, pois, pedir ajuda não era opção para um quase-demônio como eu. A puberdade chegou e aliada a ela, a ausência de educação sexual. O que não faltava em nenhum encontro, nenhuma reunião, nenhum debate eram as instruções sobre como se manter puro: longe da pornografia, da masturbação, da atividade sexual – mesmo que segura. Tudo, obviamente, pautado nas leis e instruções escritas no livro-maior-inerrante-incontestável, detentor de toda verdade existente no universo.

A testosterona no auge da produção me estimulava a burlar as regras e seguir o curso natural do desenvolvimento humano: o prazer sozinho. Mas isso, além de pecado e requisito para perda da salvação, era o motivo do meu tormento: como fugir de mim? Iniciou-se mais um ciclo de cobranças, de frustrações, de decepções, de descrença em mim mesmo. Enquanto aos prantos, tentava me redimir com o deus pregado por eles. Em dado momento, após provocações filosóficas, antropológicas, psicológicas e até psicanalíticas, consegui abrir os olhos. Olhei pra dentro, me percebi. Não como um aspirante a demônio-maior, mas como o que realmente sou: humano. Imerso na imensidão de formas de ver o mundo, o outro, os demônios e Deus, reconheci meu estado profundamente depressivo, com o pé na síndrome do pânico, as mãos na cabeça e no peito, cerca de 3 elefantes empilhados. O transtorno de ansiedade presente e as mazelas mal curadas da alma, me fizeram retornar “ao lugar de onde nunca deveria ter saído”: à reunião dos demônios sem tridentes, sem enxofre e sem inferno que prometiam salvação e céu.

Calei-me diante de abusos. Não apenas dos que sofri, mas dos que presenciava: machismo escancarado, ao ponto de incentivar de maneira repugnante mulheres aceitarem seus maridos após traírem, retornarem com o rabo entre as penas e o caráter... bom, vcs sabem onde fica o caráter dessa galera. Filhos espancados e abusados pelos pais, tendo como justificativa para a síndrome do pânico e a iminente depressão a “falta de Deus”. Tratando os problemas e doenças psíquicas como “falta de oração”. Eu, ainda submisso ao sistema, com pouco mais de 20 anos de idade, não suportando mais minha condição de “maior errante do universo”, decidi lutar contra minha própria natureza: me abster totalmente dos prazeres a sós, como justificativa mixuruca de me tornar uma pessoa melhor. A poesia, a sensibilidade à vida, ao toque, ao afeto, nunca se afastaram de mim. Eram meu escape desde antes da adolescência. Por ser sensível, até me convenceram – sem nunca terem sido direto – que eu era gay. De tanto pensar, me convenci. E aí, outra confusão: tentando me encontrar sexualmente, fugindo “dos prazeres da carne” expressos em jorros de espermas a sós, ouvi a recomendação de quando não suportar mais o desejo, tomar um clonazepam ou semelhante, pra simplesmente dormir a todo custo. Com que objetivo? não me masturbar! Como um cego, sujeito à descrição da verdade e do mundo através dos olhos do outro, assim o fiz. No dia seguinte, cheguei ao trabalho e antes de assumir o posto, tonto e com náuseas corri ao banheiro pra vomitar, afinal, nem o estômago, nem o fígado, nem sensibilidade a vida resistiria a tamanho abuso. A essa altura, com 22 anos, estava convencido que era infértil pelas minhas próprias escolhas. Era castigo divino, óbvio. E até pouco. Isso mesmo: pra mim ainda era pouco, já que recebi, certa vez, um trecho bíblico relatando a morte de um homem por ter cometido um método anticontraceptivo: o famoso coito interrompido. Após mandar todos os demônios pra casa do caralho e procurar ajuda psicológica, consegui retornar à vida, mas com as sequelas deixadas por todos esses anos: o transtorno de ansiedade que ainda é presente, a autocobrança excessiva e minúcias cotidianas. Pra minha surpresa, aos 23, fui pai. Agora, com 24, prestes a comemorar o primeiro ano da minha filha, sigo tocando a vida ao lado da mulher da minha vida, sempre que possível indo ao lugar que me possibilitou me perceber novamente: à terapia.

O peito trava ao escrever. A respiração fica ofegante ao relatar. As mãos, um pouco trêmulas. Que fique bem claro que não estou destilando ódio contra os demônios, estou fazendo um relato pessoal, que sem dúvida, encontrará espaço na história de milhões de pessoas cuja trajetória foi igual ou semelhante. Aproveito pra afirmar: vc não está só! E não, não foram demônios com tridente na mão, cheirando a enxofre guardando as portas do inferno que fizeram isso comigo. Foram homens lúcidos, de carne e osso, sem humanidade nenhuma a quem, por muito tempo chamei de pastor. Parafraseio Sartre e digo: se o inferno são os outros, os demônios são os outros. Mas não era no inferno que eu estava, contudo, preso dentro de um sistema religioso que dia após dia abre filiais e grita por assassino a quem defende a vida. Eu estava onde muitos, na mesma condição que eu, ainda estão: dentro de igrejas, acompanhados pelos ditos cristãos.

MottaLucas
Enviado por MottaLucas em 02/10/2020
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