LEMBRANCAS DA CASA VELHA
LEMBRANÇAS DA CASA VELHA
Nelson Marzullo Tangerini
Arrumando meus pertences literários em minha velha casa, encontro um caderno de anotações, onde escrevi pensamentos meus e anotei frases de autores que li e com os quais me identifiquei. É um caderno velho, já sem capa, do final dos anos 1970, quando ansiava que o país encontrasse o caminho da democracia e da liberdade. Momento em que a ditadura, assassina, já dava sinais de esgotamento.
É interessante reencontrar um velho caderno com anotações de um jovem sonhador, num momento em que a idolatria, o autoritarismo cego e obtuso chegam à beira do fundamentalismo agressivo. E é interessante como aquele jovem, nos dias de hoje, continua a sonhar com a igualdade social e a liberdade.
O título desta crônica é nitidamente machadiano, e o reencontro do velho com o jovem libertário mais parece um conto de Jorge Luís Borges.
Aqui vão algumas frases colecionadas por aquele jovem que não sonhava em ser escritor e se apaixonar definitivamente pela literatura universal.
De Otto Maria Carpeaux, anotei: “O humanismo não é a nossa religião; é a nossa razão de viver”. Faço agora um plágio de Montesquieu: porque sou cidadão do mundo, antes de ser brasileiro.
Encaixam-se em 2020, os seguintes escritos:
De Dostoievski, in “Recordação da casa dos mortos”: “A tirania é um hábito, tem a propriedade de se desenvolver, e se dilata a tal ponto que acaba virando doença”.
De Defoe, in O verdadeiro inglês: “De todas as pragas que atormentam a humanidade, a pior é a tirania eclesiástica”. Aqui, o autor parece prever esta onda autoritária defendida pelas igrejas evangélicas, via Bancada evangélica e o Gabinete do ódio.
Quanto à desigualdade social crescente e aterradora, guardo esta, de Sofocleto: “O mundo está dividido entre os de mais e os de menos”.
De Erasmo (não confundir com o velho roqueiro Erasmo Carlos), anotei esta: “Os reis não amam a verdade”, que me leva a lembrar da célebre frase do anarquista Bakunin, que acreditava (e eu acredito nisto) que “O governo é a negação da humanidade”.
Simón Bolívar, El Libertador, comparece no velho caderno com este pensamento, retirado do “Discurso de Angostura”: "Nada é tão perigoso como deixar um cidadão permanecer no poder por muito tempo. O povo acostuma-se a obedecer-lhe e ele se acostuma a mandar no povo, donde se originam usurpação e tirania”.
Estou escrevendo sobre uma velha casa, um velho caderno, um velho escritor e velhas recordações de uma ditadura que apodrecia, após prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e desaparecimentos. Daí terminar com o livro “Confissões de um poeta”, do escritor e Acadêmico Ledo Ivo, de onde retiro este texto: “À medida que amadureço (ou envelheço?), mais detesto conformistas. Só me seduz o que é protesto, rebelião, aventura do espírito que não prescinde da transgressão para se impor ou se exprimir”.
O fragmento de Ledo Ivo me faz lembrar que o velho escritor muito se parece com aquele jovem sonhador que se deixou apaixonar pela literatura e ideias libertárias.
Com este velho caderno, encontrado na velha casa, páginas que folheio e que me inspirarão em novas crônicas, dialogo, a la Borges, com aquele rapaz que continuaria, nos anos seguintes, um revolucionário, um amante da liberdade e um lutador incansável e irredutível diante do autoritarismo crescente - até a idade de 65 anos.
Quanto tempo ainda viverá este velho libertário? Não sei, não tenho bola de cristal. Talvez procure “A cartomante”, para tentar conseguir uma resposta – se até lá um bando de fanáticos não invadir a casa desta senhora para quebrar tudo.
Enfim, o jovem habita a alma e o coração do velho escritor.