CARTA DE UM VADIO

Faz alguns anos que recebi uma carta singular. Sem dúvida, linhas inóspitas. Eram as palavras de um velho amigo que, na época, morava em São Paulo. Não digo o nome dele, preferindo mantê-lo em sigilo e a salvo das más línguas, que se comprazem com fofocas e maledicências. O que posso dizer sobre o meu amigo é que era um moço sagaz, estudante de Letras e exímio orador (competência adquirida durante o tempo em que cuidou de uma igreja). Hoje, resta só um fragmento da carta, já que uma das folhas se perdeu. Eis o texto ferino, o desabafo sincero de um intelectual às avessas:

"Eles venceram. Sim, meu amigo, eles venceram. Desde o começo dos anos 90, eles não se cansam de triunfar. Exultantes, saem às ruas diariamente, expondo suas almas negras como seus ternos. Eu não gosto deles, nunca os suportei. Por isso, sou um mau cristão, se é que o sou: leio os evangelhos e não aplico aquela lição básica que diz que nós devemos perdoar nossos inimigos. Logo eu que estou rodeado deles, esses trouxas inoportunos? Jamais!

Mas um dia eu me livrarei deles. Um dia, sim, eu tomo a audácia de ir embora desta cidade. Sim, meu velho, um dia eu cresço por dentro e busco o asfalto, triunfalmente. O que vou deixar aqui? Nada, irmão. Nada! Neste lugar iníquo eu não deixo nada. Isso porque vou levar comigo o mais belo, que é algo imaterial, que nenhum bicho come e nem pode ser devorado pelo tempo. Pois é. Eu falo dessas coisas pequenas do coração sabe... Você entende a fala do coração? Você já amou uma mulher? Pense aí, irmão... Já leu um livro que afaga a alma? Já conversou com Deus, enquanto olhava as estrelas piscando na noite? Se você conhece essas coisas, sabe que estou falando de algo puro como uma mãe que acaba de parir.

Eu vou embora, levando comigo as lembranças disso tudo que é o mais bonito do meu viver. Nesse dia, vou rir dos meus inimigos, esses crápulas infames. Ao vê-los da janela do ônibus, na lonjura, vou xingá-los pela última vez. Então, para mim, o seu mundo podre de cobiça e desunião morrerá para sempre, como uma nova Gomorra se esboroando sob a ira de Deus. "Queimem, seus trouxas!", eu berrarei no meu íntimo, extasiado. "Ardam nas chamas, filhos do demônio! Eu estou farto dos seus muros, dos seus cartazes sutis, das suas mulheres avaras, das suas escolas febris, da sua moral prenhe de lucros, de seus paletós abotoados pomposos, de suas festas de ano-novo com fogos que borbulham no céu!" Sim, é justamente isso o que eu gritarei dentro de mim, lampejante como um raio, fulmíneo! E para bem longe desse mundo vil eu irei. Para uma terra boa, uma nova Canaã dadivosa, um mundo transbordante de mel e de sol.

Lá eu serei feliz, meu amigo. Lá eu não vou trabalhar todo dia, como um burro surrado, nem ajuntarei dinheiro, como aconselham meus inimigos. A vadiagem é a minha mãe. Não almejo outra coisa que não seja ela. O meu destino é vadiar, é perambular por aí, à toa, sem leis nem impostos no meu encalço. Se você quiser, amigo, poderá vir comigo. A minha ideia é ir para o Sul, para os confins do mundo. Nesta viagem, a única condição que te imponho é esta: não olhe para trás com saudade das coisas que abandonou. Lembra da esposa de Ló: porque olhou para trás, ela virou uma estátua de sal."

(Extraído de "A gata e outras crônicas", livro editado pelo Clube de Autores)