A TERRA DO AMOR
Há pouco tempo, achei um bilhete amarrotado, mas singular, entre as páginas de um livro. O papel engelhado, arrancado de um caderno, conservava as letras graúdas do meu amigo guineense, Adilson Lopes. O pequeno bilhete foi escrito em maio de 1988, quando meu amigo ainda se achava no Guarujá. Falava de um amor praiano, se é que o posso chamar assim. Eu o transcrevo aqui, nas próximas linhas.
“Meu bom amigo, eu estou indo embora, porque sou forçado a isso. Volto para a minha Bissau, mas já sinto a melancolia invadir meu peito. Vou guardar dentro de mim, para sempre, a lembrança deste belo país. Esta é a terra da liberdade. Neste país, prenhe de liberdade, germina e cresce o amor. O amor genuíno e feliz que só pode existir numa terra livre como esta.
Foi justamente aqui, meu amigo, que eu reencontrei o amor, o genuíno amor. Eu que perdi minha esposa faz oito anos, quando lutava na guerra que separou a Guiné-Bissau do Cabo Verde. Sim, essa dor eu carrego comigo. Na época, minha esposa acabou sendo ferida por um granada, numa rua perto da nossa casa. Ainda me lembro da agonia dela, do choro da nossa filha, da morte penetrando em nossa rotina, devastando o nosso lar, a nossa família...
Mas aqui, aqui neste grande país, eu reencontrei o amor. Sim, meu amigo, eu não esperava, mas aconteceu. Eu estava na praia, e o sol nascendo devagarinho, tímido entre as nuvens. Caminhava distraído quando, de repente, vi um casal assomar na praia. O mar deslizando mansamente, as ondas morrendo no areal. E eu olhando atentamente o casal, o doce casal. Um homem alto, de cabelos grisalhos, segurando a mão de uma moça mais baixa do que ele, morena, os cabelos soltos no vento. Andavam de mãos dadas na praia solitária, sem que ninguém soubesse deles, ninguém exceto eu, que os fitava de longe, ocultado pelas sombras.
Mas a terra e o céu e o mar fundiram-se quando ele, fitando-a nos olhos, beijou-a. Sim, a paisagem transformada por um beijo. Agora, tudo era belo e harmonioso, como aquele beijo. Um beijo que fez renascer a beleza e a paz, um beijo que uniu a terra e o céu, um beijo que afagou a manhã, que serenou minha alma, que me fez sorrir à toa, como uma criança. Sou eternamente grato a esse beijo que me fez lembrar da minha esposa, que a reavivou dentro de mim, estranhamente. Desde a sua morte, eu sofria amargamente. Não sonhava mais, não acreditava mais na beleza nem no sentimento que une duas pessoas, fazendo-as querer viver juntas para sempre. Minha alma estava morta. Mas agora eu sou outro homem. Desde aquele dia, 12 de maio, sou um novo ser humano. Para mim, aquele casal desconhecido é o casal mais belo que já vi neste mundo. Eu o amo profundamente, mesmo que eles não saibam, mesmo que eles nunca ouçam falar de mim.
Vou embora, meu amigo. Volto para o meu país, mas levo comigo esta lembrança. Para mim, o Brasil será sempre a terra da liberdade e do amor. No Brasil, eu redescobri o amor, o amor tal como ele é em si mesmo, na sua essência. O amor genuíno que nasce e cresce na atmosfera da liberdade, não sob a opressão. Sim, meu bom amigo. O amor daquele casal é o amor mais puro que existe, o amor que afaga e protege, o amor que acalenta, que serena o mar e as estrelas. É o genuíno amor brasileiro, crescido e elevado à sua forma plena, sob o sol da liberdade."
Em 1994, quando ocorreram as primeiras eleições democráticas na Guiné-Bissau, o Adilson elegeu-se deputado. Quatro anos depois, um golpe militar derrubou o então presidente guineense, Nuno Vieira. Por se opor ao novo regime, meu amigo acabou se exilando no Cabo Verde. Em 2000, ele retornou à Guiné-Bissau, já que a situação política do país havia melhorado. Por fim, me enviou um e-mail em setembro de 2003, quando um novo golpe militar depôs o então presidente Kumba Yalá. Suas palavras eram tristes e desoladoras. Desde então, nunca mais recebi notícias dele.
(Extraído de "A gata e outras crônicas", livro editado pelo Clube de Autores)