Sentou-se

Sentou-se. Suspirou e acendeu calmamente um charuto. Como quem relembra uma vida, fitou o horizonte. Pensativo – afinal de contas, acabara de acender um charuto. Eu, confiando e ao mesmo tempo desconfiado, permanecia calado e quieto. Não sei por qual motivo não ousei falar. O que sei é: não falei. Do nada o silêncio é rompido. Sem apresentações, apertos de mãos ou essas coisas que se faz antes de iniciar uma conversa, ele começou.

Falou-me sobre sua infância pobre e de dias difíceis. Sobre as fomes: ora de comida, ora de conhecimento. Sobre as ausências, ora de pessoas, ora de roupas. Dos desejos infantis, mas tão infantis, tão infantis, que até a infância riria deles. Eu, quieto, observava e refletia. Falou-me sobre seus amores não correspondidos, sobre as tantas cartas escritas sem respostas, as frustrações causadas pela morte. Eu, quieto, observava e refletia. Das crises, dos dias cinzas em pleno verão, dos traumas trazidos consigo, da irrelevância da vida. Falou-me sobre suas paixões, seus sonhos abortados, suas lacunas gritantes, suas quedas e saltos. Eu, quieto, observava e refletia. Falou-me da dureza da vida adulta, das responsabilidades - que chegam como o sol no dia seguinte: independente de sua vontade -, dos boletos e assinaturas em aplicativos, das fraldas e leites, da experiência paterna, dos desejos não reprimidos. Falou-me de tudo até que calou-se: eu quieto, observava e refletia.

E refletindo, como desde o início, percebo – como desde o início – a semelhança entre as duas histórias: a dele narrada e a minha vivida. E somando semelhanças e semelhanças, comparações e comparações, atesto o inevitável: até então, conversara comigo mesmo! Revivendo vivências e sonhos, desejos e pontos finais, passado, presente e futuro.

Refletir demanda tempo, disponibilidade e às vezes, ócio. Partindo disso compreendo por que razão, para alguns o isolamento social, é tão difícil: compartilhamos da nossa própria companhia quase que em tempo integral. E compartilhar nosso tempo conosco não é tarefa cotidiana. Muito menos frequente. Ninguém está disposto a repensar sua existência, seus valores e princípios. Há muito isso saiu de moda! No entanto, é necessário. E o tempo em que estamos é propício. Só que pra alguns, suportar a si próprio é insuportavelmente insuportável.

Lucas Motta

MottaLucas
Enviado por MottaLucas em 01/10/2020
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