Nossas gentes, nossas histórias( Helicópteros e salmonelas)

Muitas espécies de peixe abundavam nas águas daquele mar azul da baía da minha terra Natal naquele cantinho do Atlântico, oásis deslumbrante ao sul de Angola mas, era o peixe “Pungo” a maior referência de fartura. Como tal, somos carinhosamente conhecidos até hoje como os “cabeças-de-peixe” mais precisamente os “cabeças de pungo”.

Sempre muito orgulhosos no que se referia à nossa pequena e tão querida cidade defendíamos tudo e todos especialmente quando se dizia alguma coisa menos agradável.

Por vezes ouvia-se :

“ As ruas de Moçâmedes cheiram a peixe”

“A peixe? Não! Nossas ruas cheiram a dinheiro!”- completávamos orgulhosamente.

E era verdade!

Riquezas e mais riquezas com as inúmeras pescarias e industrias tanto dentro da cidade quanto nas lindíssimas praias vizinhas mas, era ali na marginal da cidade onde realmente havia um cheiro mais característico de peixe e onde os sinais mais marcantes daquela história pesqueira existiam tal como, na praia do Cano, as” Furnas”, buracos nas falésias residências dos primeiros colonos , local de muitas brincadeiras e onde fui imensamente feliz na minha infância.

Por ali existiam várias pescarias e fábricas com instalações modernas e alto potencial de produção de farinhas para exportação para vários países da Europa e África, tanto quanto estaleiros onde se faziam embarcações de grande porte e consertos das traineiras que iam diariamente para o mar.Antes da construção da marginal na nossa costa no final dos anos 50 e seqüente construção do porto comercial, minhas idas ao mercado de peixe nas falésias da baía tornaram-se inesquecíveis . Lembro-me do ponto de chegada quase em frente ao Palácio do Governo, residência do governador. Descia a falésia precisamente ali; a pescaria era um buraco na encosta. Minha mãe permitia que eu fosse com o cozinheiro( o célebre dos pasteis de massa tenra), fazer as compras do peixe bem cedinho, e escorregando terra amarela abaixo sentia-me quase em pleno vôo olhando o mar .Havia uma meia dúzia de degraus desenhados naquela areia firme da encosta mas, algo muito improvisado.

Precisamente ali naquele local chegavam os barquinhos que traziam o peixe fresco para o 1º mercado de peixe da cidade na marginal, e para aquele especifico ponto de venda onde eu ia com meu cozinheiro .Os barquinhos eram lindos! Eram as célebres “chatas”,e vinham cheiinhos do melhor peixe, o que ia para a mesa dos moçamedenses.

Uma vez meu padrinho Dr Elias Trigo, único veterinário especializado em salgas e conservas de pescado formado em Universidade portuguesa até àquela data, foi convocado para um trabalho de muita responsabilidade. As farinhas de peixe das nossas fábricas exportadas para a Alemanha estavam chegando ao destino estragadas com salmonela. Contratado pelo governo português foi lhe dada a tarefa de deslocar-se a alguns países do norte da Europa onde poderia fazer bons estudos sobre o assunto .Levou com ele um amigo de Moçâmedes , um dos membros da Associação de Grêmio de Pesca e proprietário de uma das fábricas da cidade. Lá chegando à Alemanha depararam-se imediatamente com novidades. Os primeiros helicópteros começavam a ser fabricados em grande escala na Europa e eram os preferidos para vôos de curtas distâncias. Sem nunca terem visto um helicóptero na vida e sem qualquer idéia de como aquilo se sustentava no ar, tiveram de aceitar aquele meio de transporte pois teriam de visitar outros países nórdicos.

Lá foram os dois, meu padrinho e o amigo de Moçâmedes e entreolhando-se aflitos...

-“ Vamos , amigo? Coragem!”

-“Vamos Dr. O Sr à frente, p.f.”

Que azar deram naquele 1º dia. Tiveram de enfrentar muitas bolsa de ar( bolsas térmicas).

-“ Mas o que é isto, amigo” É assim mesmo?”

- “Não sei Dr. Também é a minha 1ª vez. Não lhe sei dizer.Nunca andei nesta coisa.”

-“Mas olhe lá. Você é ainda muito novo, não é? Faz muita falta aos seus.Não nos vai acontecer nada, não?!”.

-“O Sr Dr também é novo, Sr Dr. Fazemos os dois muita falta a este mundo e às nossas familias”.

Não sabendo mais o que dizer um ao outro começaram a rezar . Filhos de famílias católicas e fervorosas só lhes restava pedir a ajuda dos céus. Correu tudo muito bem e sãos e salvos chegaram ao destino.

E assim foram todos aqueles dias de helicóptero graças a Deus sem mais bolsas de ar.

A viagem foi proveitosa e esclarecedora. Constataram na Alemanha que o funcionamento das máquinas na fabricação de farinhas era muito semelhante ao de Moçâmedes mas havia um fator chave: clima diferente.

Tal como no funcionamento das nossas fábricas, na Alemanha o peixe entravam nas máquinas ainda fresco logo após ser pescado e saía do outro lado já convertido em farinha e óleo . Portanto, num processo de secagem rápida, em clima muito seco. Mas, o clima de Moçâmedes era muito úmido e a farinha conservava a umidade.Era um problema a resolver especialmente para viagens longas . Só havia uma solução; secar-se muito bem o peixe fresco antes de entrar na máquina que o transformaria em farinha.E assim feito, tudo resolvido !

Os dois heróis chegaram à cidade com mil histórias para contar especialmente sobre aquele “avião “ que fazia um barulho assustador nos ouvidos, e que quase os derrubou pelos céus das “Europas” ignorando a função nobre e oficial de dois amigos moçamedenses para acabar com as salmonelas das farinhas da nossa cidade.

Ó que salmonelas, salmonelas !!!

Lana

Teresa S Carneiro
Enviado por Teresa S Carneiro em 01/10/2020
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