A Ave-Maria (histórias do interior)

(Hélio da Rosa Machado)

“Era de tarde; o crepúsculo descia sobre a crista das montanhas e a natureza como que se recolhia para entoar o cântico da noite; as sombras estendiam-se pelo leito dos vales e o silêncio tornava mais solene a voz melancólica do cair das cachoeiras. Era a hora da merenda em nossa casa e pareceu-me ouvir o eco das risadas infantis de minha mana pequena! As lágrimas correram e fiz os primeiros versos da minha vida, que intitulei – “As Ave-Marias: A saudade havia sido a minha primeira musa. (Cassimiro de Abreu).

Depois de ler essa pequena introdução feita por Cassimiro de Abreu em 20 de agosto de 1859 (inspirado na lembrança do seu passado), na obra AS PRIMAVERAS, surgiu também em mim uma pequena gota de saudade que me aflorou no peito, porque lembrei de minha infância vivida numa pequena cidadezinha deste Estado de Mato Grosso do Sul (quase divisa com o Paraguai), onde vivi sonhos, aspirei ares de felicidade, colhi sementes, plantei esperança e tornei-me uma testemunha viva dos encantos que rodeiam uma infância que mais tarde refloresce como encantos de mágica, fazendo-nos um ser viajante onde nos tornamos capaz até de sentir o cheiro do nosso lugar, a cor do sol que se punha no crepúsculo das tardes, tornando as nuvens bem coloridas, onde cada menino podia com o seu olhar de sonho desenhar todas as figuras que pudesse contornar naquele horizonte belo e inebriante.

A emoção é grande ao pensar na igrejinha simples, mas que ao seu lado subia uma obra imponente se cotejada com a proporção do lugar onde vivíamos. Em dimensões nunca vista paredes enormes insistiam em ultrapassar os limites do Céu, subindo além dos padrões de uma casa qualquer. A obra ficou muitos anos esperando pela sua conclusão e os fiéis trabalhando incessantemente para arrecadarem fundos; daí a razão das grandes festas nas quermesses abrilhantadas por leilões históricos que eram executados por uma pessoa ímpar da comunidade, que tinha um coração cheio de boa vontade, era o seu Delson Machado (meu pai) que de olho na melhor oferta lembrava um jogador de truco e muitas vezes até subia na mesa do autor do último lance, fazendo desafios aos demais interessados na disputa.

Na mesma igreja estudei por muitos anos na escola Paroquial, onde vivi momentos de muita riqueza cultural, razão pela qual lembro de pessoas de grande expressão pedagógica numa época de poucos recursos físicos, materiais, humanos e intelectuais, mas que se tornaram gigantes para a época, pois chegaram a construir um carro alegórico imitando a Apolo 11, causando grande aplausos a todos que viam aquela réplica perfeita de uma Astronave que marcou uma época na exploração do espaço. Estou falando da Maria Silvia e o Arnaldo Sória, um casal que revolucionou o teatro amambaiense, levando expressivo número de pessoas que comparecia na escola Paroquial para ver os espetáculos inacreditáveis para a época.

Mas eu tive privilégio que não era normal ou acessível a todos os moradores da minha inesquecível Amambai, porque sempre morei ao lado da casa Paroquial e também ao lado do local onde se realizavam as inesquecíveis quermesses e por tal razão tenho muitas lembranças daquelas festas, dos eventos culturais, das missas e até dos ‘rachas’ de futebol no final das tardes frias de inverno ou dos crepúsculos de verão, quando a gurizada se reunia em frente à minha casa, numa rua calma - sem movimento algum de veículos - onde o gramado natural insistia em crescer abundante dando azo à imaginação da meninada, porque ali poderiam ocorrer grandes partidas, como de fato ocorria.

Talvez um dia poderei contar com maiores detalhes muitos episódios que marcaram a vida deste humilde morador que tem saudade e pode afirmar com muita honra que veio do interior e curtiu com intensidade os momentos de sua infância, porque ali naquela cidade, grandes histórias surgiam do relato popular, pois ninguém esquece do repórter noturno chamado Genésio, que bem cedinho já fazia ponto na Farmácia do paraguaio Ernesto Landolfo, para relatar tudo o que havia acontecido nas sombras da noite, cujo comportamento sedimentava a imaginação das pessoas sendo certo que alguns já o chamavam de “homem-lobisomem”.

O curioso é a intensidade de pessoas com atividade mental retardada, que perambulavam pela cidade, causando verdadeiro pavor aos moleques menos avisados, eis que eu mesmo, na minha infância de sonhos, não percebia que tais pessoas eram apenas fruto de folclore popular, já que nenhum deles era capaz de fazer mal a qualquer pessoa.

Nesse contexto de pessoas não-comuns ainda me lembro: da “Lídia Louca”, do “Bey-Bey Pedrito; do “Joaquim-qüim-qüim”; do “Marco Velho”; do próprio “Genésio”; de “Alcides louco”; lembro também daquela “senhora” que iniciou a vida adulta de muita gurizada, mas que em respeito aos seus familiares prefiro não divulgar o nome, mas muitos desses guris que hoje são personalidades em todos os cantos deste Estado sabem de quem estou falando; enfim, acho até que estou esquecendo de mais alguns, porque recentemente numa conversa com amambaienses tínhamos contado um número bem mais expressivo.

Não esqueço também das afamadas “barrocas” que se situavam bem próximas de minha casa, ou seja, estou falando de enormes erosões que se formavam ao redor de um córrego rodeado de um brejo, local este predileto para as disputas teatrais da molecada como se fosse um grande palco para as brincadeiras de bang-bang, cuja arma era um estilingue equipado com “projéteis” de frutinhas da árvore mais conhecida naquela região, a famosa sina-mão.

Outro fator de lazer para os intrépidos guris da época era o banho no rio Panduí ou na represa da serraria, onde a gurizada se reunia cada um exibindo sua mestria em pulos acrobatas. O banho predileto era o da represa; uma opção nova que se formou com uma modificação do curso natural do riozinho que desaguava bem próximo das serrarias do Antônio Japonês e do Antônio Delgado.

Falando no Antônio Delgado - um culto paraguaio de se erradicou em Amambai - lembro que este era meu professor de Inglês. Curioso esse fato, posto que quem o conheceu sabia de seu sotaque híbrido onde misturava castelhano com português. Num certo dia, a turma de alunos do ginásio foi flagrada com a presença repentina de nosso professor de inglês; deparando o referido mestre com uma sonora algazarra e alaridos. Como represália, o professor determinou que todos fossem “segurar o teto”. Isso significava que estavam de castigo e que teriam de erguer as mãos simbolizando pessoas que seguravam a estrutura superior da sala. Não cessando as gozações, o castigo ficou mais severo, dizendo o professor: - Ah! Vocês non entende mais portuguêsss, então vamos hablar e tratar de inglêsss: PRÔVA...PRÔVA...PRÔVA.... Nisso alguns alunos contestaram e disseram que não estavam preparados. O professo mais uma vez retrucou: - Ainda non entenderamm bien...Vou repetir notra língra: Somente una ol-há em cima del mecita para hacermos prôva...Evidente que todos nós tivemos uma lição dupla, pois além de aprendermos inglês também saímos doutores em castelhano.

Não vou me prolongar ainda mais nessa narrativa não porque me faltam estórias, pois nos poucos anos em que construí minha infância em Amambai, vivenciei muitos episódios que marcaram em minha memória, como, por exemplo, a estória de um primo que estava com a bateria arruinada da sua caminhonete com gaiola para carregar gado; então carregava um burro para puxar o veículo no sentido de dar partida “no tranco”.

Vou finalizar com as lembranças mais marcantes de minha infância e acredito que todos aqueles que viveram em Amambai jamais poderão esquecer, pois esses momentos estão relacionados com duas músicas. Essas lembranças são: a) Quando o nosso time do coração entrava em campo, o saudoso “Milionário” e aí tocava aquela música de mesmo nome: Milionário. Essa música poderia tocar em qualquer rádio, ou qualquer festa, que todos que a ouviam logo a associavam ao grande time que tivemos a satisfação de acompanhar naquela época – um time vencedor – que enfrentava em condições de igualdade grandes times do Paraguai como Serro Portenho, por exemplo. c) A outra música também nos faz estremecer quando a ouvimos. Esta toca o fundo da alma, pois significou para nós amambaienses um momento rotineiro que penetrou em nossa mente como uma sinfonia. Quem poderia esquecer daquele toque das 18:00 horas, quando os potentes alto-falantes da igreja católica soavam a singela melodia que chamávamos de: O toque da “Ave-Maria”.

Machadinho
Enviado por Machadinho em 24/10/2007
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