sobre 2020- Rotina
Estou sentada na varanda bebericando um chocolate quente e vendo a chuva cair. Três meses de isolamento voluntário. A pandemia chegou repetindo o padrão histórico de outras pandemias e mexeu com o mundo. Esta veio com novidades: as redes sociais e a cobertura da imprensa em tempo real. Cenas de covas coletivas, depoimentos de doentes e parentes de vítimas, contagem diária de leitos disponíveis nas enfermarias e nos Centros de tratamento intensivo. Os jornais e as redes sociais contam mortos e contaminados todos os dias. As notícias criam pânico ou indiferença, depende de quem as assiste. Tudo mostrando o pior de nós e do mundo Umas três vezes tive sintoma de COVID e fiz o teste rápido. Todos deram negativo. Acho que quando estiver com um sintoma da doença não vou dar valor, pois sinto falta de ar todos os dias.
Inácio foi ao supermercado. Tarefa demorada. Tem um número máximo de pessoas que podem entrar no supermercado e as outras esperam em fila, na porta. Todos de máscara aguardando a sua vez de entrar. Quando ele chega com as compras é mais trabalho. Lavamos e enxugamos todos os pacotes de cereais e pães, frascos de materiais de limpeza, frutas, verduras e legumes. O que não pode ser molhado, fica de quarentena por dois dias ao ar livre. Inácio me pergunta onde obtive esta informação de que estes cuidados são necessários. Respondo que foi nas redes sociais. Cada um fala uma coisa, mas não custa nada obedecer.
Enquanto espero, penso nos filhos, nos netos e nos amigos. Três meses sem ver nenhum deles. Gustavo é médico cirurgião, trabalha em um bloco cirúrgico e, por achar ser mais vulnerável à contaminação, se isolou com esposa e filha. De vez em quando passa na porta da nossa casa e os vejo de longe, dentro do carro, sem tocar em ninguém. Nova modalidade de visitas: Visitas drive Thru. Arthur está isolado em casa com Amélia e as crianças. Têm receio de sair, a avó de Amélia tem oitenta anos, é diabética e Amélia mantem o contato para ajudar a olha-la. As crianças deles? Não vejo Rodrigo e Elena há três meses, Só no celular em lives de WhatsApp. Hélio trabalha e viaja muito, com receio de se contaminar e nos contaminar, saiu daqui de casa para morar sozinho.
O isolamento rearranjou os espaços e a maneira de conviver. Daniel está tendo aula em um espaço virtual criado pela escola. Conversamos sempre, também via celular. Me disse que não aprende quase nada e que tudo está muito confuso. Sente saudades dos colegas, da aula de futebol e está muito nervoso, falando alto e chorando por qualquer motivo. Uma criança de dez anos, ficar a tarde toda sentada, assistindo aula no computador é muito difícil. Passou a jogar muito vídeo game. Qual atividade uma criança pode ter fechada em casa? Os adultos se desdobram para dar atenção e ajudar nas tarefas da escola. Todos estão trabalhando em home office e dizem que a carga de trabalho é muito maior. Não têm horário fixo e todos pensam que todos estão disponíveis o tempo todo.
Com amigos e outros parentes falo por mensagens no celular ou vídeo chamadas. Sinto falta da convivência. Dois amigos ficaram doentes e internados. Muitos estão em isolamento. Às vezes, à noite, conversamos via conferência no celular, preenche o tempo mas nunca será a mesma coisa de um encontro.
As noites são piores que o dia. Às vezes sinto uma agonia, inquietação, angústia, não sei definir bem. O que eu sei é que tenho vontade de desistir de tudo, não consigo achar melhor maneira de descrever meu sentimento do que com o chavão “Para o mundo que eu quero descer”. Tento, como todo mundo manter uma rotina, que é uma maneira de seguir em frente. Tudo que eu sei neste momento é que eu queria a minha vida de volta e que, ao contrário do que eu sempre pensei, felicidade é rotina, é uma vida bem organizada em que tudo acontece conforme o esperado.
Márcia Cris Almeida
15/06/2020