Segredo de pai

Era uma cidade grande o suficiente para as pessoas não se conhecerem além do círculo comum de suas amizades. E nela vivia o Aníbal – sério, discreto, honrado. Aníbal vivia lá com seu segredo embutido. Não era um segredo que o guardasse para os amigos, para algumas pessoas com quem se encontrava nas ruas, mas era um segredo que ele escondia das meninas, as três lindas filhas que ele criava com todo o esmero e para as quais sonhava uma vidinha trivial e feliz, casadas, com filhos – uma vida parecida com a dele. Nada mais que isso! Pobres, dignos, felizes.

A filha mais velha, a Esmeraldinha, que já se aproximava dos quinze anos, via o pai – todo alinhado – sair quase todas as noites para os serviços de garçom. Nunca soubera onde era o bar, que lhes trazia o sustento e o pequeno conforto em que viviam. Quando menorzinha, lembrava-se de que, na escola, as crianças falavam das lojas, das empresas de ônibus, das oficinas em que seus pais trabalhavam. Tudo muito bem localizado! Alguns pais levavam seus filhos para conhecerem os lugares. E eles até escreviam sobre isso. Com ela sempre fora diferente. Uma vez, usando de criatividade, teve até de inventar um bar, com seus clientes, com as amizades que o pai fazia, tudo muito criativo. Uma ficção, que a professora adorou.

A menina crescia e agora sentia a curiosidade de saber. Notava que, quando saía com o pai pela cidade, ele cumprimentava alguns conhecidos e evitava sempre conversar com eles. Era tudo muito rápido. Menina e pai caminhavam pelas lojas, e Aníbal ia – com toda a alegria do mundo – alegrando a filha querida com mimos de lojas, e não se esquecia das menores, e da mulher... `

À noite, repetia-se a rotina. O pai se trajava e ia garantir o sustento de suas quatro mulheres. No bar, no desconhecido bar. A mãe talvez soubesse onde era o trabalho, mas Esmeraldinha evitou perguntar. Se ela nunca dissera, talvez fosse melhor evitar algo que pudesse atritar os dois. Vida que seguia. Um segredo. Uma curiosidade. Uma rotina em nada infeliz. Não fosse pela dúvida da menina de que pudesse ser algo criminoso.

Até que um dia... Nada é eterno. Aníbal, do nada, ficou gravemente enfermo. Esteve no isolamento do hospital e depois foi para a casa, com o coração debilitado. O homem era tristeza e doença, e as duas coisas o tornavam próximo do fim.

Aníbal sabia que as quatro mulheres teriam de viver com a parca pensão, seu único espólio. Não mais as gorjetas, que excediam o salário, trariam fartas provisões e pequeno conforto àquele lar. Lembrava-se das meninas do bar. Na verdade, uma boate, à qual chegavam tantas – lindas, pobres, sofridas – com apenas aquela opção de vida. Nunca lhes fez um gracejo, nunca lhes acenou com palavras indelicadas ou obscenas. Nunca, nunca, nunca...Era um homem cristão. E se espelhava na lição evangélica do carinho tão especial do Cristo pelas mulheres, a ponto de, ressuscitado, aparecer primeiro para uma delas.

Aníbal cumpria os rituais do labor, fazia apresentações, mas nunca gostou daquilo. Na verdade, era um local aonde as frequentadoras iam espontaneamente, ninguém era aliciada. Ninguém se prestava a intermediações pecuniárias. O que ele fazia era servir bem os clientes. Apenas isso. E, todas as noites, Aníbal via aquelas mulheres e temia pelo destino de suas meninas. Tinha tanto receio de que aquilo pudesse acontecer com elas; tinha tanta pena, pensava quão infelizes deviam ser pais que se descobriam naquela situação. Sentia-se culpado de um mal que não fizera e, também, por isso escondia das filhas para onde ia. E as educava na dignidade e no bem. E pedia saúde a Deus. Saúde que via desabar.

Naqueles dias de improvável convalescença, alguém liga para casa de Aníbal, fala das ausências, pede notícias e fala da boate com Esmeraldinha, que, enfim, descobre o segredo do pai. A menina –inteligente, humana, doce – entendeu tudo e guardou aquilo para si.

Esmeraldinha foi capaz, sim, de se colocar no lugar do pai. Não via nada de indigno no que ele fazia. Foi capaz até de imaginar o quanto ele seria bondoso para com aquelas meninas, que se tornavam párias sociais e, se ele não dizia do emprego, era para preservar as suas queridas mulheres de preconceitos e jocosidades. Na verdade, pensou a menina, ele era vítima desses tabus sociais, desses estigmas divisionistas, que separam a humanidade em bons e maus, segundo convenções moralistas, sociais.

Aníbal definhava. O fim era questão de pouco tempo. Esmeraldinha achou por bem contar-lhe o que sabia... Contou, refletiu com ele e agradeceu. E prometou zelar pelas outras seguindo o exemplo que ele lhes dera. Aníbal foi em paz.